Remetendo à maneira de filmar ontológica de Lumière, o diretor espanhol Lois Patiño explora os limites da imagem, do tempo, da moldura e da narrativa cinematográfica.

O cinema surge de um desígnio: representar a realidade tal qual ela se apresenta diante da câmera em seu tempo e espaço concretos; este é seu mito fundador. Os filmes de Lumière, no nascer da sétima arte, surgiram sob este desígnio. Lumière posicionava a câmera, estática, para capturar os fatos do mundo que se desenrolavam. Não havia um interesse “narrativo” no sentido de articular qualquer relação dramática entre os elementos na tela. Essa tradição de “filmes de mostração” ou “não-narrativos” foi deixada no passado pela história do cinema. Porém, já no período contemporâneo da sétima-arte, um cineasta espanhol se destacou realizando filmes sob premissas muito similares às de Lumière: Lois Patiño, que desde 2009, com seu curta-metragem Paisaje-Duración: Trigal, realiza filmes que exploram as relações entre câmera e paisagem, imagem, tempo e moldura.
Patiño, nas séries de filmes Paisaje-Duración e Paisaje-Distancia, lida com o posicionamento da câmera da mesma maneira que Lumière: em sua estaticidade, inabalável, perante os eventos que filma. A câmera é posicionada em determinado ângulo e enquadramento, escolhendo uma maneira de controlar o acaso do mundo filmado, enquanto as ações se desenrolam. Enquanto em Lumière esta maneira de fazer cinema surgia do encantamento com uma nova possibilidade de documentar o mundo, Patiño utiliza-a para explorar os limites da moldura da imagem cinematográfica, da manipulação temporal e das relações de proporção, enquadramento e construção narrativa do mundo. A narrativa, no sentido de que falo aqui, é não a “história”, mas a maneira como o cineasta escolhe filmar os eventos de seu filme: tudo é narrativa; quando uma reportagem jornalística opta pelo close-up em determinado acontecimento de uma manifestação, aí há uma construção narrativa pela escolha do que filmar, do que evidenciar sob os quatro limites da tela.
Em Paisaje-Distancia: Campo de Fútbol, o diretor filma alguns garotos que jogam futebol, enquadrando, a princípio, apenas o campo e o jogo dos meninos. Porém, a cada novo corte, Patiño apresenta um pouco mais da paisagem na qual estes garotos jogam: um enorme cânion, desértico, onde tudo o que existe perto dos garotos são a si próprios, o campo de futebol no qual jogam e uma cabana. Se, ao início, temos um filme ao estilo de Lumière, com a simples “mostração” de uma realidade, a cada novo corte o jogo de futebol começa a tornar-se cada vez mais carregado de um sentido emotivo, ao parecer que estes garotos não tem nada nem ninguém a seu redor, a não ser a si mesmos. Assim, Patiño joga com a potência sensível da narrativa mesmo perante os acontecimentos crus da realidade, sem a necessidade de criar eventos fictícios para gerar conexão e criar emoção diante do espectador. Nesse sentido, o diretor espanhol evidencia a força da elaboração audiovisual para gerar fenômenos, o que, no cinema, é muito muito mais importante do que apenas estruturar uma história complexificada.

Outro elemento muito interessante da série Paisaje-Distancia é como Patiño amplia a janela dos acontecimentos ao gerar mais distância entre a câmera e os objetos filmados, de modo a revelar a moldura da imagem: se, em Lumière, acredita-se que a câmera é uma espécie de “janela” para o mundo, de onde se assiste aos acontecimentos filmados, Patiño parece sugerir isso ao início de seus filmes-distância, porém, subverte essa percepção pelo corte da montagem, demonstrando que por trás de toda janela existe uma moldura, um algo que enquadra e recorta a realidade.
Uma das comparações mais interessantes que pode ser feita entre Louis Lumière e Lois Patiño é entre L'Arrivée d'un train à La Ciotat e Paisaje-Duración: Carretera. No primeiro, a câmera capta, em profundidade de campo, a chegada de um trem à estação. No segundo, também em profundidade de campo e posicionada estaticamente, a câmera capta a passagem de vários carros por uma estrada, numa angulação muito semelhante à usada por Lumière. O experimento da chegada do trem foi uma experimentação com o movimento, com o tempo, com a captura de ambos por uma máquina recém-inventada (o cinematógrafo). De certa maneira, Lumière estava finalmente concretizando a aspiração impressionista de reproduzir o movimento na tela. Patiño, entretanto, retoma a pictorialidade impressionista trazendo não só mais o movimento comum do mundo capturado pela câmera, mas, também, embaçando a imagem de modo a transformar tudo o que se vê na tela em fluído, um tanto incognoscível, como se cada pedaço da imagem estivesse em constante movimento. Não à toa, pela edição, Patiño transfigura a todo momento a imagem, jogando com suas possibilidades de tornarem-se algo diferente a partir da mesma captura, num constante movimento e transformação.
Dessa forma, Lois Patiño parte do cinema não-narrativo e “de mostração” de Lumière para construir uma relação rica com a linguagem cinematográfica, pela preocupação com a elaboração narrativa de sua mise-en-scène. Porém, mais do que buscar compreendê-lo por análises, a filmografia de Lois Patiño fala muito mais por si do que qualquer conceituação em cima da mesma.
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