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Foto do escritorLucas Tameirão

Especial PTA | Licorice Pizza (2022)

Um olhar nostálgico sobre uma época a partir do romance adolescente, a história mais velha do mundo – mas, nem por isso, menos doce


Vou começar este texto, caro(a) leitor(a), com um exercício mental: imagine que você e o seu cônjuge, quem quer que seja, já estejam juntos há vinte anos e, numa bela tarde de domingo, se peguem lembrando de como foi o início do relacionamento de vocês. Como seria essa relembrança? Bem, vocês certamente se lembrariam de quando se conheceram pela primeira vez, como foi sentir aquela primeira faísca que desembocaria na paixão que os uniu, como vocês provavelmente rejeitaram relacionarem-se de maneira mais séria num primeiro momento, os perrengues que passaram juntos, quem disse o primeiro “eu-te-amo”, etc., tudo sob uma ótica carinhosa e nostálgica. Afinal, é por essa história que vocês estão juntos hoje.

Mas essas lembranças não viriam dissociadas do contexto temporal em que elas aconteceram. Vocês, afinal, não deixam de serem produtos das suas culturas específicas em quaisquer medidas, de modo que a época das suas juventudes se infiltrou e influenciou o enredo da história de amor entre vocês, direta ou indiretamente. Assim, ao mesmo tempo que vocês lembram da paixão adolescente que os uniu, é praticamente inevitável que acabem se deambulando, também, pelas peculiaridades geracionais de quando vocês eram jovens. E, uma vez que vocês contemplam essas lembranças com olhos saudosos, toda a afeição que desponta do romance se espalharia por todo o contexto em que ele aconteceu. Ele, afinal, também é parte integrante da mesma história que, hoje, os uniu.

Dessa forma, o retrato que você, leitor(a), e o seu cônjuge ergueriam celebrariam não apenas a paixão que os uniu, nos trancos e barrancos de um romance adolescente, mas seria, de fato, uma homenagem nostálgica a toda uma geração. O romance adolescente nada mais é do que uma experiência que induz deslumbramentos, novas descobertas e paixões muito fervorosas, que todos nós ou já vivemos, ou iremos viver; nesse sentido, não se trata lá de uma narrativa muito inédita. Com efeito, no entanto, todas essas emoções se espalhariam pela época em particular que serviu de palco para tal história, de modo que culminam na nostalgia por toda uma época. Logo, a doçura da saudade vem com um gosto mais específico.

E é justamente essa a beleza de Licorice Pizza, o mais recente filme de Paul Thomas Anderson. O que faz o romance que está no centro do enredo deste filme não se tornar uma chatice estarrecedora (que já vimos dez vezes ou mais), para além da honestidade espontânea e calorosa que imprime a partir da relação do casal protagonista, Gary e Alana, é justamente o fato de que a obra produz um retrato nostálgico da época em que acontece a história de amor. Em outras palavras, para além desse senso de honestidade bem marcante no filme, são as peculiaridades contextuais da trama, que a afetam direta ou indiretamente, o que tornam este enredo, outrora já visto muitas outras vezes no cinema, único.


Imaginemos agora, caro(a) leitor(a), que os supracitados protagonistas de Licorice Pizza estão eles próprios juntos há vinte anos, e estão eles numa tarde de domingo se relembrando dos primeiros anos do relacionamento. Nesse sentido, a confortável tarde de domingo de Gary e Alana seria uma saudosa viagem de retorno à Los Angeles, nos EUA, dos anos 1970. A partir das lembranças da paixão primordial, isto é, eles mergulhariam num sonho antigo de uma época que viveram e que não apenas fez parte das suas histórias como pano de fundo, mas como, na verdade, é inerente a ela, e, por isso, lhes é muito especial.


A mise en scène de Paul Thomas Anderson, desse modo, encontra um interessante equilíbrio entre a espontaneidade do romance de Gary e Alana e um controle cênico ensaiado. O costumeiro virtuosismo técnico do cineasta, aqui, ao retratar o casal em suas performances que soam orgânicas e espontâneas emoldura os personagens nos cenários do contexto narrativo. (A afinidade de Anderson com o ator Cooper Hoffman e o fato de a atriz Alana Haim ter o mesmo nome na realidade, o que provavelmente indica que a sua personagem não age de modo tão diferente assim da maneira como a própria atriz se porta costumeiramente, decerto auxiliam a direção de atores na busca desse efeito de naturalidade das atuações.)

Isso faz com que o cenário inunde a imagem e, em diversos momentos, desperte no espectador a mesma fascinação estética que emana dos próprios personagens. Além disso, a estrutura narrativa permite-se divagações pelo universo do filme, apenas para sempre retomar o enredo central, da mesma forma que os personagens, após perderem-se em suas próprias vagueações, estão sempre retornando para si e, com efeito, sempre reforçando o amor que nutrem um pelo outro, que sempre esteve entre eles desde o primeiro momento. Desse modo, a paixão espontânea proveniente do romance entre Gary e Alana se dispersa por todo o cenário (isto é, por toda a época), uma vez que este está interligado a essas divagações dos personagens e da estrutura narrativa, e isso, por si só, culmina num retrato nostálgico.

Além disso, toda a história de Gary e Alana se relaciona de maneiras diretas e indiretas com o contexto histórico, dos seus personagens peculiares aos eventos de escala global, que, não obstante, afetam o cotidiano dos personagens. Nesse sentido, todos esses eventos históricos e personagens específicos da época, por mais que possam ter expressividades mais robustas em outras narrativas, em Licorice Pizza, só têm relevância narrativa na medida em que afetam ou não a relação do casal. Dessa maneira, embora a forma do romance de Gary e Alana seja essencialmente modelar, a forma como a história se desenrola depende das suas peculiaridades contextuais; por conseguinte, é inevitável que elas sejam levadas em conta.

A caracterização de Gary, por exemplo, possui certas características que o localizam quase que imediatamente como um produto do contexto cultural dos EUA. Ele é, para começo de conversa, um empreendedor nato, capaz de perceber o potencial de vendas nos mais excêntricos produtos, dos colchões d’água até as máquinas de pinball (ambos os quais, por sinal, devem possuir ligações com as excentricidades dos EUA nos anos 1970). Além disso, seus impulsos hormonais de adolescente encontram vazão num certo tipo de figura masculina da sua época, a Los Angeles de 1970: um ator arrogante, mulherengo e ambicioso. Essa figura, aliás, se vê refletida principalmente nos personagens de Bradley Cooper e Sean Penn.

No caso de Cooper, é um exemplo de um “perrengue” que Gary e Alana teriam passado e, confabulando sobre esses acontecimentos, se lembrariam com bem-vindos toques de humor. Inclusive, a construção que leva a toda a situação e, ademais, serve-lhe como indutora de tensão dramática, depende da falta de combustível nos postos de gasolina, por consequência da crise do petróleo de 1973. Não fosse esse evento, o “perrengue” não teria acontecido. Eis, aí, mais uma demonstração de como o contexto histórico se relaciona de maneira íntima com a história dos personagens, nesse caso até com um toque de humor absurdo, porque todos nós sabemos da magnitude catastrófica da crise do petróleo de 1973; em Licorice Pizza, no entanto, o evento só tem relevância ao afetar ou não o romance central.


No caso de Sean Penn, é uma forma como o desenvolvimento do romance central depende da época e suas peculiaridades. Penn aparece em cena quando Alana, frustrada com as imaturidades de Gary, acaba indo buscar admiração em outros homens. Na medida em que ela percebe que a atração que o personagem de Penn lhe dedica não é genuína, e sim interesseira (um pequeno e inconsciente passo para o reconhecimento de que só Gary é verdadeiramente apaixonado por ela, diga-se de passagem), o filme aproveita para construir um retrato caricatural desse tipo de personagem que Penn incorpora.

O mesmo acontece com o personagem de Cooper e, ademais, com tantos outros personagens excêntricos que, em seus respectivos aspectos, carregam uma certa identidade marcante de como eram os anos 1970. Adequadamente, as performances de Cooper e Penn (e, também, a título de exemplo, a de John Michael Higgins, como um bizarro dono de uma franquia de restaurantes japoneses) são estapafurdicamente burlescas, como se os seus personagens não pudessem ser levados a sério, e sim vistos apenas pela ótica da comédia exuberante. Em suma, um adorno caricatural que denota personagens de uma época muito específica, e que, de um modo ou de outro, fazem parte da história de Gary e Alana.

Sem contar, é claro, com toda a atmosfera dos anos 1970; tal clima característico é produzido de várias maneiras, desde o uso de equipamentos e formas de filmagem que remetem à época (Licorice Pizza, por exemplo, é filmado em widescreen, o que, inclusive, abarca uma amplitude ainda maior do cenário, o que permite a sua “inundação” pela imagem, que descrevi anteriormente), à trilha sonora composta por canções populares da época que, por si só, já são indutoras de nostalgia em potencial. Assim, a partir do romance adolescente, todo o filme é um mergulho saudoso em uma geração – como seria uma saudosa lembrança do entusiasmante início de uma paixão, que inevitavelmente leva em conta os seus arredores.

O romance adolescente, acima de tudo, é um tipo de narrativa que incita o gosto pela descoberta. Ao associá-la com o contexto dos anos 1970, Paul Thomas Anderson, que evidentemente possui uma afeição em particular com esse período, faz do seu filme uma verdadeira experiência de descoberta sobre essa época para o espectador contemporâneo. Em conclusão, num tempo em que a nostalgia é mais utilizada de maneira mercadologicamente estratégica, é mais do que revigorante ver um filme interessado em despertar emoções genuínas a partir do seu universo particular, do qual ele honestamente sente saudade.


Nota do crítico:


Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular.



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