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Foto do escritorRodrigo Heber

Especial PTA | Jogada de Risco (1996)

Paul Thomas Anderson reflete sobre orgulho e humildade por meio de um universo soturno



Sydney, o protagonista de Jogada de Risco, longa de estreia do cineasta Paul Thomas Anderson (PTA), nos deixa com a pulga atrás da orelha desde a primeira cena. Nela, o vemos atravessando a rua e oferecendo um café e um cigarro a John, um rapaz mal cuidado que se encontra largado na calçada de uma cafeteria, sem perspectiva alguma. Tem algo de muito estranho naquele homem: quem oferece a mão daquele jeito, sem buscar nada em troca? PTA filma a cena toda pelas costas do protagonista, que veste um sobretudo preto. Como se fosse um gangster de filme, não vemos o seu rosto. Por um tempo, desconfiei que ele poderia ser realmente um gangster! Entretanto, ele vai dando mais e mais demonstrações de bondade e piedade, que parecem genuínas. Ele é um homem sério e calado — indecifrável, de certo modo. Mesmo assim, ele transmite muita paz e tranquilidade. Tem sempre as palavras mais sábias, cuja força se amplifica por sua concisão. Ele é compreensivo com as fraquezas humanas — ajudando uma garçonete que se prostitui ocasionalmente, sem julgá-la em momento algum — e é combativo com as ofensas e crueldades que testemunha — recriminando os escárnios de Jimmy, um amigo malandro de John que se torna peça-chave no decorrer da trama. Mesmo assim, desconfiamos de Sydney. Ele pode ser bom, mas há algo oculto em seu silêncio.


Conforme descobrimos perto do final do filme, Sydney nem sempre foi tão bom. Não sabemos detalhes disso, mas entre suas perversidades está o assassinato do pai de John. Nesse tempo todo, Sydney buscava sua redenção, devolvendo a John o pai que lhe havia tirado. Ele quer se redimir de seu ego: de quem ele é e de quem já foi. Seu coração continua podre, mas ele tem obtido êxito em reprimir-se. Vemos em Philip Baker Hall, desde o seu rosto envelhecido aos menores detalhes de sua interpretação, que ele já tomou muita surra da vida e que, de algum modo, mudou. Ele sofre por dentro. Ele está sempre se segurando. Ele não quer ser a mesma pessoa que apostava em “hard eight” — rara combinação de dois dados marcando 4 (a jogada arriscada do título brasileiro).



Uma vez, anos antes, Jimmy viu Sydney apostar 2 mil dólares num “hard eight”. Ele perdeu a aposta, mas deixou Jimmy admirado por sua coragem. Ao relembrar a aposta, Sydney diz que ela foi estúpida. Seu arrependimento se baseia numa questão moral: essa aposta requer muita arrogância do apostador — como é o caso de Jimmy, que a realiza no último ato do filme. (Aliás, o protagonista não gosta de Jimmy porque ele o lembra de si mesmo.) Mesmo assim, não podemos ignorar que a aposta também era muito estúpida materialmente: é quase a mesma coisa que abrir mão de 2 mil dólares.


A busca de Sydney por redenção é como um paradoxo de John Ford (cujo filme Paixão dos Fortes é mencionado pelo próprio protagonista numa conversa corriqueira). Para se redimir, além de mudar sua forma de viver, ele resolve ajudar o rapaz a quem tornou órfão. Mas ele faz isso desinteressadamente? Ou é movido por seu interesse na própria redenção? Isto é, se agir desinteressadamente é bom para mim (é do meu interesse), como posso agir desinteressadamente? É um paradoxo especialmente fordiano porque PTA não se preocupa em resolvê-lo, mas em expor a complexidade moral e sentimental que o envolve. No final, quando Sydney mata Jimmy, ele está apenas repetindo o que sempre fez. É um último “hard eight”. O agridoce do evento é que ele expressa tanto o seu ego quanto o seu amor por John. Enviando Jimmy ao túmulo com seu segredo, ele garante que sua mentira continuará em vigor e que John não perderá o pai que acabou de ganhar. (Só de escrever isso, O Homem Que Matou o Facínora já me vem à minha mente.)


Comparado aos outros filmes que PTA lançou nos anos 1990, seu longa de estreia é extremamente sombrio e sisudo. Não tem nada do brilho festivo de Boogie Nights ou da qualidade mágica do Magnólia. Este filme reflete em todo o seu estilo o peso do fardo de seu protagonista e nos faz temer pelo futuro, ainda que o rapaz John o tenha como um grande horizonte aberto. A angústia silenciosa sentida por Sydney é a base ontológica de Jogada de Risco. É um mundo difícil de explicar, cuja ansiedade natural contamina o público do início ao fim. PTA valoriza o presente, aqui e agora, porque é a divisória entre o fardo de um passado imutável e o horizonte de um futuro imprevisível. O filme se divide em algumas poucas cenas, quase todas bem longas. Sua parte principal se desenvolve em poucos ambientes no decorrer de pouco tempo. Embora todas as cenas sejam movimentadas dramaticamente, a contemplação ocorre com naturalidade graças à atmosfera construída. O único momento de empolgação (em que o estilo fica até mais pop) é a primeira sequência no cassino. Ali Jogada de Risco chega mais perto do que nunca da vivacidade dos dois filmes seguintes do diretor.



Ao longo da obra, PTA dá tempo ao tempo e nos entretém com maravilhosas cenas de diálogos que valem em si — pela densidade contida em palavras simples, mas espertas, e pela forma criativa, mas sutil, com que ele as encena — justamente pelas mesmas razões que as fazem tão significativas e impactantes em seu contexto maior. Elas são algumas das melhores expressões desse mundo cinza. Nelas se destaca, especialmente, a interpretação de John C. Reilly como o rapaz John. Seus olhos brilham quando Sydney fala, ele tem esperança e felicidade genuína, mas está sempre medindo suas palavras, como um garoto tímido. Ele realmente ama viver — parece que ele nunca tinha sido tão feliz quanto agora. Quando descobrimos que seu pai morreu por assassinato, as peças se encaixam: ainda que ele não pareça traumatizado, ele tem um vazio diferente no peito (que Sydney ocupa em grande parte, o que nos convence ainda mais da ambiguidade do clímax).


Texto algum pode exaurir esse filme, muito menos um tão curto. A garçonete interpretada por Gwyneth Paltrow, por exemplo, é um capítulo à parte por representar um tipo específico nessa relação entre orgulho e humildade, porque ela sofre de uma auto-estima baixíssima, mas oculta um ego enorme e que se fere com facilidade. O sequestro de um de seus clientes, que gera a cena mais tensa do filme, é como o “hard eight” dela. Quando Sydney a ajuda a sair dessa situação, ela retorna à sua baixa autoestima, se sentindo mal pelo que fez — como acontecia antes do sequestro. Seu drama pessoal não está tão intrinsecamente relacionado ao de Sydney, mas a forma como os dois se relacionam revela muito sobre ambos e enriquece o panorama temático do filme.


Em Jogada de Risco, todas as decisões criativas resultam numa experiência que reflete, desde o âmago, a ambiguidade de seu mundo. Apesar de ser um dos menos comentados, creio que seja um dos melhores do diretor.


 

Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular.



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