Apesar de haver muitas distinções para fins didáticos, o olhar documental muitas vezes se aproxima da ficção, e vice-versa. Tudo depende de como você articula aquilo que se quer mostrar e concilia com as suas intenções
Após a sessão de “Drive My Car”, eu comentei com um amigo o quão poderoso e impactante foi o efeito do filme para mim, e que a dimensão emocional da obra, mesmo que tivesse um enquadramento ficcional e fosse baseada em um conto, me aproximou de uma abordagem documental, em que o diretor Ryusuke Hamaguchi filmava nada mais do que a soma de interações de inúmeros atores sociais que, juntos, vivenciavam, mais do que a releitura de uma peça teatral, mas os desdobramentos físicos da memória, seja de quem viveu um fato, de quem o testemunhou ou de quem ouviu a história e passou adiante.
A maior dificuldade era a de encenar, materializar, os sentimentos que vinham a eles de forma incompleta, seja pela barreira geográfica, distância física, dificuldade de se ouvir e até de se enxergar para além da performance. Assim, informações vão sendo traduzidas, reinterpretadas e assimiladas de um jeito diferente por cada um, no palco da própria vida. Cada intérprete fala uma língua diferente, mas isso não é problema, porque a comunicação atravessa a distância e ameniza a probabilidade da impossibilidade (de ver, de tocar, de sentir).
Os dilemas de “Drive My Car” acabam sendo os mesmos de quem tenta dar voz às pessoas, a diferentes estilos de vida. No livro Introdução ao Documentário, o autor Bill Nichols separa a função de desempenhar algum papel pré-direcionado em uma obra qualquer de representar a si mesmo. Essa separação serve para fins didáticos de distinção entre obra de teor ficcional e documentário, como se fosse uma definição simples para se ter por perto em um dicionário.
No entanto, ambas as formas são cinema. Ambas podem ter contato com a realidade, mas são mediadas por uma equipe, cujo diretor enquadra o olhar e depois o altera, com outros profissionais, na pós-produção, então partem do mesmo princípio.
Em “Always For Pleasure”, de Les Blank, essas ideias pré-estabelecidas se confundem, porque o cineasta permite que os retratados sejam o que quiserem. A câmera está lá, cumprindo seu papel de registrar, mas ela não limita as possibilidades. Essa afirmação serve tanto para quem é entrevistado (se a pessoa estiver falando, temos acesso à toda sua expressividade, e se ela estiver gesticulando ou fazendo algo, o enfoque será outro) quanto para quem passa pelas ruas, as bandas e os curiosos. Ninguém se sente intimidado ou com o campo de ação reduzido.
É feriado de Mardi Gras, uma espécie de carnaval americano, e estamos em Nova Orleans. Partindo desse pretexto, Les Blank faz cinema sem manual embaixo do braço. Em 58 minutos, ele passeia por todo o entorno do simbolismo da data, e procura quem faz toda essa arte acontecer. Ouve músicos aposentados, cozinheiros, trabalhadores braçais... Mas os ouve mesmo, até o fim, indo tudo de uma vez, sem o esquema das talking heads, de ficar indo e vindo várias vezes no mesmo entrevistado.
Não tem voice over, e não tem manipulação de opinião. As pessoas dão tchauzinho e sorriem, mas momentos de euforia e comemoração, filmados ou não, sempre nos transformam em agentes das nossas próprias ações, ou seja, quem é filmado ali está, ao mesmo tempo, representando a própria imagem e desempenhado um papel.
Muito interessante, nesse contexto, saber da movimentação da população negra em manter a tradição dos Mardi Gras Indians. São atores de um espetáculo e agentes sociais. Isso é o que acontece quando você vai direto na fonte, nas pessoas e nas relações: a naturalidade torna-se tão grande que a situação toda parece encenada. E, em algum grau, não é?
Há ainda um momento que talvez resuma boa parte da ideia, para além de uma simples distinção entre o que é real e o que não é. A respeito da celebração do carnaval, um dos entrevistados fala justamente sobre essa performance que fazemos nos feriados e datas festivas. Ele diz que, no caso das pessoas "de respeito", mais conservadoras, elas não poderiam se dar muitos luxos e prazeres na vida, então se cobriam com máscaras, se passando por um "falso" eu justamente para ser quem elas eram, antes que o lado verdadeiramente falso, de abandonar tudo e ser "puro", viesse à tona. Um baita estudo antropológico.
Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular.
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