Quando nasce um clássico, vários porquês nascem junto com ele. O primeiro e o mais essencial de todos, que sempre foi a raiz da questão e onde todo questionamento começa é: afinal, o que torna um filme um clássico?
Quando nasce um clássico, vários porquês nascem junto com ele. O primeiro e o mais essencial de todos, que sempre foi a raiz da questão e onde todo questionamento começa é: afinal, o que torna um filme um clássico? Alguns irão responder que filmes clássicos são aqueles exageradamente bons, ainda que, ironicamente, não saibam responder com precisão o que torna um filme realmente bom. Outros, todavia, irão dizer que apenas o tempo dirá. Mas, também não vão saber especificar a quantidade de tempo que torna um filme clássico. Seria um ano, cinco, uma década? Não sabem. Na esfera dos mais pragmáticos, existirão aqueles que classificariam enquanto filme clássico todos os que se encaixam em determinado momento histórico do cinema hollywoodiano de mesmo nome. Ou mesmo, filmes que seguem certas qualidades formais específicas, relacionadas à direção e à técnica.
Eu já discordo da grande maioria e acredito que todas são, na realidade, tentativas frustradas de achar essa tão sonhada definição. Para mim, um clássico não está na forma, nem no tempo (apesar de entender o distanciamento temporal como necessário no reconhecimento de um), nem no momento histórico do Cinema em que o filme se encaixa, nem na bilheteria que gera. O que torna um filme clássico é, em todos os casos, a quantidade de porquês que nascem junto a ele e o quanto isso tem influência em deixá-lo memorável. Filmes clássicos precisam gerar questionamentos, disrupção e, mesmo anos depois, deixar uma marca inconfundível e irreparável não apenas na história da sétima arte, como na sociedade, que não tem outra alternativa a não ser referenciá-lo a todo tempo.
Quando eu penso em filmes clássicos que se encaixam na minha definição é impossível não lembrar de Poderoso Chefão. O filme de Francis Ford Coppola é uma espécime rara, um clássico que só nasce uma vez a cada milhão. A história da família Corleone é uma obra de arte irretocável que nasceu cheia desses porquês, foi moderna e disruptiva, deixou sua marca na história do Cinema e da sociedade, em especial, a ítalo-americana e é, até hoje, referenciada em mais uma centena de obras diferentes, extrapolando os limites do cinema e conquistando a televisão, a música, o teatro e os videogames. Assim, não é nenhum exagero dizer que a trilogia de Coppola é revolucionária.
Antes do filme, mafiosos retratados no Cinema não tinham uma dimensão psicológica complexa o suficiente para criar laços tão fortes com o espectador. Em Scarface - A Vergonha de uma Nação (1932), o Al Capone de Hawks muito mais tinha a ver com o arquétipo de vilão e o filme, com a construção de um clássico noir no embate do bem contra o mal, que com um anti-herói em um complexo melodrama. O que torna Vito Corleone interessante, assim como Michael, é o fato de ambos seguirem regras de conduta próprias que, embora à primeira vista possam parecer injustas à uns, conseguem saciar o senso de justiça de vários.
O surgimento desse tipo de personagem, um vilão cujas ações imorais não se tornam tão chocantes e repugnantes para o público pois estão embasadas em uma lógica própria. A recepção do público à época de Poderoso Chefão com esse tipo de história e senso próprio de justiça, dialoga diretamente com a história dos Estados Unidos no momento em que o filme foi lançado, especificamente no início dos anos 70. Àquele período, o país havia entrado em uma recessão sem precedentes, com uma alta inflação e um cenário político extremamente confuso e divergente. Em meio à Guerra Fria, tentava a todo custo recuperar seu status de grande potência mundial, mas as crises do Petróleo, a derrota no Vietnã e vários outros aspectos, iam na contramão disso.
Para um país que, desde o final da Segunda Guerra Mundial, pregava seu estilo de vida como o ideal, nos anos 70 viu seu “american way of life” finalmente ficar “em baixa”. Se os estadunidenses não tinham o estilo de vida dos sonhos que era vendido à beça pelo seu país, muito menos os imigrantes. A população, no geral, estava desacreditada nesse way of life tanto quanto estava na justiça, na política e em todas as instituições sociais. Deflagrou-se um interesse especial pela narrativa do crime, por aqueles que faziam a justiça acontecer pelas próprias mãos - sem interferência do Estado.
O Cinema, consequentemente, refletiu esse momento histórico como se fosse um espelho e permitiu que essas pessoas, na condição de espectadores, pudessem extravasar todos os seus sentimentos ruins e de revolta contra o governo, através de personagens que realizavam nas telas aquilo que fora delas seria absolutamente reprovável. A família Corleone foi o símbolo máximo dessa frustração com o dito sonho americano, representando, portanto, desde o seu lançamento, uma das mais incríveis e completas histórias sobre a crise dessa propaganda e sobre como, pouco a pouco, o mito foi se desfazendo.
O segundo filme da trilogia, especialmente, discute muito a chegada de Vito Corleone em solo americano partindo do pressuposto de que seu poder foi instituído através da sua própria comunidade, a comunidade ítalo-americana em Nova York, a qual, no início do século XX, se via desamparada por um Estados Unidos que negava ao máximo a sua presença e, então, sai em busca do estado paralelo por uma proteção que vias comuns não concediam. A máfia, que antes era vista como algo infame e notoriamente má, passou a ser sinônimo de uma justiça rápida e eficiente - surgindo uma mudança histórica de paradigma.
Não fazia mais sentido pensar no mafioso como alguém exclusivamente mal, pois o que se sabia era muito mais complexo do que isso. O mafioso não era apenas um homem cuja moralidade estava irreparavelmente condenada, também era um sujeito que levava uma vida “comum”, zelava pelo bem-estar da sua família e de todos os outros membros da sua comunidade. Vito, assim como Michael posteriormente, fazem o que está ao seu alcance para resguardar suas famílias, amigos e todos os outros membros de sua comunidade, o que coloca a palavra “padrinho” não apenas como um sinal de respeito, como também de gratidão entre os seus.
A constante dualidade entre a luz e as sombras dos filmes pode ser interpretada sob esse mesmo prisma: nas sombras, o moralmente reprovável, nos ambientes claros, familiares e festivos, o homem comum e identificável. A cena inicial do primeiro filme, por sinal, é um bom exemplo disso. Somos introduzidos à figura de Don Corleone em um escritório de luz precária, pequeno, enquanto a festa de casamento da sua filha acontece do lado de fora, imensa e iluminada pelo sol ao ar livre. São dois momentos diferentes, para dois Corleone diferentes. Poderoso Chefão dimensiona e desdobra as figuras de seus “Don” nessas diversas camadas, tão bem elaboradas que chegamos bem perto de achar que eles realmente existiram fora das telas e isso, para além de revolucionário, é memorável - e inspira uma série de produções até hoje.
O nascimento de personagens como Walter White e Tony Soprano na televisão, mesmo anos depois da trilogia, é um exemplo disso. Os protagonistas de duas das maiores séries dos últimos tempos, Tony e Walter, são muito bons em seguir suas próprias regras, embora sejam péssimos quando o assunto é seguir as normas do Estado. É criado um universo próprio onde um homicídio se torna uma prova de lealdade e onde o tráfico, por exemplo, pode ser tratado como um grande negócio. Constituem os chamados vilões “aprovados”, sobre os quais não se nega a deficiência moral flagrante, intrínseca a estes, mas, também, não se condena inteiramente, já que suas ações são em grande maioria justificáveis por algum outro viés.
No terceiro capítulo da trilogia, mesmo após Michael ter sido capaz de matar o próprio irmão um filme antes, nos deparamos com uma cena crucial que confere à ele uma humanidade pouco vista anteriormente, a cena da confissão. É nesta que temos enfim contato com um homem o qual, até então frio e cruel, hoje chora arrependido e sozinho por culpa dos rastros de violência que deixou ao longo da vida. Algo que se repete, de forma similar, no final de Família Soprano e vai se repetir também, em momento crucial, em Breaking Bad. Essa é uma das provas que fazem com que Poderoso Chefão seja um clássico indiscutível: a sua reprodutibilidade e a capacidade de inspirar, como se fosse uma espécie de exemplo a ser seguido, ainda que 50 anos tenham se passado desde a sua estreia.
Como outro importante aspecto de discussão, é impossível não comentar a sua relação com o cristianismo. Sabe-se que a comunidade ítalo-americana, assim como a Itália como um todo, sempre esteve muito ligada à religião cristã desde o Império Romano. A história do cristianismo praticamente se funde à história da Itália e do povo italiano e, tendo isso em mente, a trilogia acaba marcando seus filmes através de cerimônias essencialmente religiosas, que registram não apenas um senso de temporalidade nos filmes como revelam um aspecto certamente paradoxal entre o sagrado e o profano.
No início do primeiro, o matrimônio de Connie. No segundo, a primeira comunhão de Antony. No terceiro, a honraria concedida pelo Papa à Michael. Entre suas cenas mais brilhantes e perturbadoras, um batismo. E, na sua cena mais reveladora e dolorosa, a confissão. A Igreja e sua ritualística estão presentes em todos os filmes de Coppola, fazendo relação direta com o que é criminoso e bárbaro. Esse contraste entre os dois temas, que também é reforçado pelo jogo de luz e sombras, além das constantes imagens religiosas que invadem as telas vez ou outra, deflagra uma aceitação maior do público da época por um tema que conversa perfeitamente com o surgimento de uma contracultura no país.
Não era que a religião estivesse sendo abandonada, mas passou a ser muito mais questionada - especialmente a Igreja Católica - do que antes. A mesma população que enfrentava naquela década de 70 a forte crise econômica e política, foi a mesma que se viu desacreditada nas instituições, especialmente na Igreja e na Família. Poderoso Chefão não foi o único filme que deflagrou esse tipo de pensamento naquela época, mas certamente foi um dos que mais impactou. Até hoje, na já citada série The Sopranos, a cena do batismo foi refeita, embora de uma outra forma - mas sem tirar a dualidade que nos perturba.
A religiosidade dos personagens em meio à violência performada por estes gera um certo fascínio principalmente porque, instintivamente, a experiência religiosa é firmada em uma mistura constante de sentimentos díspares. Estamos sempre entre a repressão e a servidão, entre o prazer e a dor, entre a dúvida e a fé. Existe uma intensa dualidade entre esses sentimentos, decisões e impulsos, que irão guiar as escolhas feitas por Michael e por Vito, especialmente as mais difíceis de se fazer. É um embate silencioso e, ao mesmo tempo, bastante perceptível, entre o certo e o errado.
Além disso, a trilogia já na década de 90 data de lançamento do terceiro e último capítulo, também trouxe à tona a corrupção da Igreja Católica e expôs em uma complexa e muito bem elaborada trama política como a instituição era tão falha quanto os homens que a formavam. O “A Morte de Michael Corleone” irá retratar a religião cristã em um mundo tão perverso e ganancioso quanto o do crime. A política, que converge entre esses dois universos, é apresentada como tão violenta e traiçoeira quanto. Algo que ficará cristalino quando Michael irá dizer uma das mais famosas frases do filme: “política e crime são a mesma coisa”. E, de fato, são mesmo.
Para um homem que buscava a redenção da família, tanto quanto de si mesmo, Michael Corleone termina com promessas vazias e cada vez mais distante de Deus. Uma trilogia que se inicia com o frescor do sonho americano, onde o céu parece ser o limite, se finda com a tragédia que nasce da busca eterna por esse sonho e a impossibilidade, para os Corleones, de serem vistos como cidadãos americanos, livres de todas as acusações. Naquele solo da “terra da liberdade”, o terceiro filme expõe que não importa o quanto lutassem para sair do contexto que estavam inseridos, para sempre seriam vistos como mafiosos e inferiores, ainda que tenhamos visto ao longo de três filmes o quanto a política americana pode ser tão suja quanto a máfia.
Desde a primeira vez que assisti à história da família Corleone, as figuras de Vito e Michael jamais saíram da minha cabeça. Todos os motivos que eu citei até aqui são válidos para entender o porquê disso, mas acho que a principal razão foi a quantidade de questionamentos que surgiram em mim assim que o filme terminou. Não sentia ódio dos personagens, apenas lamentava o fim trágico que levaram em alguns momentos, achava que a família Corleone parecia até ter feito por merecer o nosso perdão. Um perdão, inclusive, cristão, como o que Michael busca durante o terceiro filme.
Eu, sempre que podia, relacionava o filme com uma série de acontecimentos históricos, sociais, políticos e culturais que pudessem ter levado ao nascimento de um clássico tão impressionante como esse. Como o desmoronamento constante do mito da meritocracia, a exposição do que há de mais podre na política e no estilo de vida norte-americano e como, por décadas, a terra da liberdade não foi nada mais que um ringue de sobrevivência com regras bastante primitivas.
Também pensei no meu senso de justiça, na moralidade envolvida nessa narrativa e no código de conduta que os mafiosos seguiam para proteger suas famílias, sempre tão protetores e absurdamente coerentes com estes. Acabei chegando à conclusão de que o clássico puramente existe. Não se relaciona com nada além da potência que tem em se fazer inesquecível, inspirador, imortal e revolucionário. Quanto mais tentarem explicar porque Poderoso Chefão é um clássico, mais clássico ele irá se tornar. Quando tentam explicar porque Cidadão Kane ou Vertigo alcançaram a mesma classificação, mais e mais clássicos irão se tornar.
São esses os tipos de filme que sempre valerão uma revisita, não importando em qual momento da vida você esteja ou a quantidade de conhecimento cinematográfico que carregue, pois sempre irá encontrar algo de novo. Meu pensamento inicial era de esgotar esses três filmes que vi em maratona em apenas um extenso e analítico texto, mas é impossível. Filmes que nascem com tantos porquês se tornam imortais e somos obrigados a reproduzi-los, de novo e novo, a fim de explicar seus feitos.
Se Mario Puzo e Francis Ford Coppola não tivessem criado Poderoso Chefão como conhecemos, dificilmente teríamos as séries que citei ao longo desse texto, ou mesmo um dos mais incríveis filmes de máfia (e outro clássico) de Martin Scorsese, Goodfellas, por exemplo. Talvez não tivéssemos peças de teatro sobre essa história, artigos acadêmicos sobre os Corleones e, até mesmo, um jogo de videogame inspirado nesse universo. Se essa obra nunca existisse, filmes sobre máfia poderiam estar sendo retratados, até hoje, no maniqueísmo enfadonho e na superficial visão do crime enquanto simplesmente reprovável.
Era capaz de ninguém ter se dado tamanha conta da importância da comunidade ítalo-americana em solo estadunidense, nem tivesse apreciado a história da máfia italiana sob o ponto de vista em que se conecta com a religião e a política tão intrinsecamente. Era capaz de passar despercebido que o que temos de mais importante no século XX é a história da formação do continente americano sob o ponto de vista da importância da imigração na fundação de cidades e nações inteiras. Talvez, a história do Cinema fosse escrita de outra maneira quando falamos sobre isso.
Quem poderá saber? Esse é meu último questionamento. Até outros nascerem quando em mim Poderoso Chefão fizer uma nova revelação, me apontar uma nova ideia e me guiar uma nova direção para outro (espero), tão extenso e revelador, texto.
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