A mitologia do homem-morcego sob o olhar de um autor cinematográfico.
O cinema é uma arte bebê, extremamente recente perante seus pares. Mas, ao mesmo tempo, possui um sistema formal bem delineado e, especialmente, evidente. Ao contrário de uma arte tão tradicional como a literatura, que o leitor comum pode ter a tendência a enxergar como explicitamente conteudista, mesmo os espectadores mais leigos estão conscientes de certos elementos formais do cinema - ainda que de forma superficial - como os movimentos de câmera, enquadramentos, closes, etc. É a partir desses elementos que um autor como Alexandre Astruc propõe o conceito de “caméra-stylo” (ideia que inspira o nome de nossa coluna aqui na Singular), sugerindo a possibilidade que os cineastas têm de “escrever” com sua câmera tal qual um escritor escreve com sua caneta. Assim, em um paralelo à gramática da língua, cria-se uma gramática do cinema, capaz de expor conceitos complexos tanto quanto o livro mais detalhista.
André Bazin, pai da tradição de crítica cinematográfica com maior sucesso na Europa, aponta, nos anos 50, para o triunfo estético de “Diário de Um Pároco de Aldeias”, filme de Robert Bresson que adapta o livro homônimo de George Bernanos. O que Bazin destaca em seu texto sobre o filme é que o sucesso artístico da obra de Bresson está em transpor os efeitos estilísticos que Bernanos alcança no livro para as telas, ao mesmo tempo em que o diretor se mantém fiel às suas próprias concepções filosóficas e estéticas. Ou seja, Bresson reescreve a obra de Bernanos que inspira seu filme a partir de sua própria autoralidade (que manifesta-se não alterando o conteúdo do livro, mas adotando uma postura estética-formal particular).
Peço perdão pela introdução um tanto longa, mas adentrei todos esses tópicos para apontar que uma grande adaptação cinematográfica de outra mídia necessita entender as especificidades do meio, da sétima arte. E, mais do que isso, é fundamental que o diretor da obra assuma sua postura como autor e não mero reprodutor do que já foi criado anteriormente.
É justamente essa posição que Matt Reeves adota em seu The Batman. Antes, falemos um pouco sobre o autor: Reeves é um cineasta que encontra espaço para sua veia autoral dentro do blockbuster hollywoodiano, já tendo provado isso nos seus dois filmes da trilogia Planeta dos Macacos. Neles, Reeves demonstra interesse pelo detalhe, utilizando do CGI para consolidar o realismo de sua mise-en-scène. Faz isso ao guiar cada cena com um preciosismo formal que busca aproximar o espectador dos macacos que protagonizam o filme, que soam tão realistas tanto pelos efeitos especiais invenjáveis como pelas atuações (com captura de movimento) naturalistas; de modo que o close aproxima-nos de forma íntima ao rosto e, logo, à sensibilidade daquelas personagens. O interesse de Reeves está no detalhe como potencializador dramático.
Finalmente chegando a The Batman, o diretor eleva este interesse pela intimidade como ferramenta para seu drama já ao escolher que história deseja contar sobre o homem-morcego: Reeves opta por enfim apresentar ao público de cinema a face de “maior detetive do mundo” da personagem, optando pelo mistério do neo-noir ao invés do frenesi da ação. Com isso, abre seu filme a partir do olhar de um binóculo que, como nos close-ups de sua câmera, aproxima-se para espiar a intimidade das vidas num apartamento em Gotham City. Um tempo depois, ouvimos a narração de Batman, apresentando-se como esse “animal noturno” sempre à espreita. Seu olhar é, então, vigilante: os bandidos têm medo de que, por acaso, encontrem-no em uma sombra pelas noites. O olhar de Batman nos é apresentado como sua ferramenta de investigação e também de poder, não apenas sendo uma complemento da outra, mas sim consequência. O close é abundante no filme, especialmente na primeira vez em que Batman investiga o assassinato do prefeito de Gotham - cena que melhor nos introduz a montagem analítica que irá guiar o senso analítico do protagonista ao longo do filme.
Contudo, até mesmo nas cenas de maior ação, Matt Reeves faz questão de explicitar detalhes de objetos como carros (na incrível cena de perseguição ao Pinguim) e reações de rostos a partir dos closes. Todos os elementos acabam sendo levados a um plano íntimo, em que o drama é sustentado no detalhe analítico e potencializado pelo realismo e intensidade dramática dos atores de seu elenco, de modo que mesmo o plot do filme que, durante boa parte de seus 175 minutos de duração, conta a cruzada do herói de Gotham contra a maior ameaça megalomaníaca que surgiu contra a cidade até então (o grande vilão do filme, Charada), acaba em determinado momento tornando-se íntimo e pessoal ao protagonista (tanto para Batman como para Bruce Wayne).
Inclusive, essa mistura do drama de Gotham com o drama de Bruce/Batman é, tanto quanto o intimismo e realismo dramático, refletida em escolhas formais precisas no filme. A opção pela filmagem em digital não me parece surgir apenas pela sua facilidade em relação à película. Reeves acaba conseguindo utilizar do digital para transformar Gotham e as personagens do filme em uma “massa de imagens” (assunto sobre o qual meu colega Lucas Nascimento escreveu sobre, recentemente, na última edição da Revista Singular), tornando tudo uma mesma superfície imagética: Bruce Wayne, os mafiosos, Selina Kyle, a polícia corrupta, Batman, etc. Toda a mitologia da personagem está imersa como uma única coisa, que é a perversidade e o caos no âmago de Gotham City. A cidade e seus elementos misturam-se em uma massa mitológica que parece uma alucinação sombria. Assim, é interessante notar como, apesar de tudo o que pontuei anteriormente quanto ao realismo no filme, Matt Reeves permite certa liberdade em sua mise-en-scène para a construção mitológica do mundo destas personagens já tão bem conhecidas e estabelecidas, evitando o vazio do realismo pelo realismo.
Essa mitologia é reforçada em diversas cenas, como a do primeiro momento em que Batman e Selina se encontram no filme. O olhar de um para o outro, mais do que indicar que eles já se conheciam, é quase uma piscadela para audiência que igualmente os conhece muito bem. O filme não se interessa mais pela origem, mas sim pela mitologia do Batman que, muito bem estabelecida em nosso mundo, vem agora sendo (re)escrita através da autoralidade de Matt Reeves. O mesmo vale para uma cena ao final do filme, em que Batman, Selina e Gordon (os principais representantes dessa mitologia aqui) se unem para derrotar os planos do Charada.
O reconhecimento e aceitação desse universo que se fundamentou nos quadrinhos acaba levando também a cenas que refletem momentos essencialmente pulp que ecoam uma lógica própria aos quadrinhos e que funciona perfeitamente, justamente porque o filme não quer assumir uma postura “inteligentinha” que olha com soberba para os elementos mais quadrinescos das histórias do Batman. Seu romance com Selina é provavelmente o melhor exemplo do que estou falando. Primeiro, ela é evidente como uma femme fatale, demonstrando que o diretor também se apropria de elementos populares do cinema de gênero. Mas, toda a dinâmica mais caricata que esse romance assume, tanto em suas conotações sexuais como enquanto paixão “inocente”, trazem um respiro pulp para a seriedade realista do filme. Como conhecemos bem o romance do Batman com a Mulher-Gato pelos quadrinhos e outras adaptações, vê-lo nas telas é apenas mais uma afirmação dos elementos reconhecíveis de seu universo. A cena em que os dois se beijam sob o pôr do sol de Gotham reflete tudo o que pontuei sobre isso até aqui: os corpos de ambos misturam-se com a cidade marginalizada em segundo plano (reforçando aquela massificação das imagens), ao mesmo tempo que é provavelmente a cena mais melodramática de todo o filme.
Mas e quanto ao grande vilão, o Charada, que ainda não apareceu nos quase dez parágrafos dessa crítica até então? Foi preciso separar um espaço próprio para ele. Pois este é um personagem que, tanto quanto Batman, o grande protagonista, reflete todas as percepções que tentei expor sobre o filme até aqui. É o antagonista perfeito. Primeiramente, a mesma dinâmica de olhar como vigilância e poder que Batman adota, também está presente no Charada. A massificação de imagens, que une Gotham como uma coisa só, também é refletida pelo vilão. Mais do que isso, é nele que essas duas ideias estilísticas se unem: Charada é um vigilante, cujo olhar por trás de sua máscara capta tudo quanto seus olhos e as diversas telas sob as quais opera conseguem enxergar. Ele é a vingança, a punição. Batman, o grande herói, encaixa perfeitamente nesta mesma descrição. Não por acaso, em diversas cenas sugere-se que o Batman está prestes a surgir das sombras, mas, na verdade, quem aparece é o vilão. Consigo pensar em dois exemplos: ao início do filme, na cena em que o prefeito está assistindo o debate para as eleições em sua casa, pouco antes de ser assassinado - enxergamos o olhar de uma figura na sombra, a qual facilmente se assume ser o protagonista do filme que está começando. Porém, é o Charada, assassino do prefeito. O mesmo acontece com o promotor que Batman estava investigando e que também é morto pelo personagem vivido por Paul Dano. É comum a associação de Batman com seus vilões, apresentando-os ambos como loucos e faces da mesma moeda (especialmente quando se trata de seu tradicional arqui-inimigo, o Coringa), e Matt Reeves consegue concretizar essa relação com suas escolhas gráficas e dramáticas (novamente, entendendo e adaptando o universo da personagem para sua autoralidade).
Agora, o uso dessa ambiguidade proporcionada pelas sombras, na qual protagonista e antagonista, herói e vilão, se escondem, é, além de um elemento que reforça a atmosfera sombria neo-noir do filme, outra escolha estilística que torna as imagens muito menos opacas, criando certa confusão para enxergá-las e, com isso, reforçando sua massificação na tela. Essa atitude estética, ao mesmo tempo que se encaixa na proposta de mise-en-scène de Reeves, acaba sendo também arriscada, já que, pensando estritamente em termos de composição, pode acabar criando cenas “feias”, pela dificuldade de enxergar em meio à tanto escuro e sombras. O principal exemplo, e o único que talvez tenha de fato me incomodado, é a cena em que Alfred conversa com Bruce no hospital. É uma cena tão simples, para não dizer genérica, formada apenas por plano e contraplano, que assisti-la inteiramente com sombras muito marcadas acaba tornando-a enfadonha e redundante.
Quero, inclusive, aproveitar os dois adjetivos com os quais encerro o parágrafo anterior. Isso porque, antes mesmo que o filme saísse oficialmente, acabei entrando em contato com críticos que afirmam justamente isso sobre o longa: “redundante, cansativo, etc.” É engraçado como enxergo tais adjetivos “negativos” como parte construtiva da proposta estética do filme (demonstrando que, quando se trata de crítica de arte, adjetivos não dizem nada sem seu devido contexto na análise). Matt Reeves entrega a dinâmica do olhar de sua câmera para os dois personagens detentores do olhar no filme: Batman e Charada. O que acontece, porém, é que o vilão é o grande manipulador desta história, seu arquiteto, guiando Batman e todos os mafiosos e policiais de Gotham em seu próprio ritmo. A genialidade da abordagem do diretor é colocar o espectador em uma posição de ser controlado tal qual o herói do filme por um vilão que serenamente constrói seu objetivo, peça por peça, charada por charada. Dizer que este filme é “cansativo” revela nada mais que outro mérito desta obra de Matt Reeves.
Entretanto, retornando à similaridade Batman-Charada que mencionei nos parágrafos anteriores, devo ressaltar a importância do final da obra como conclusão efetiva do arco dramático deste Batman ainda em construção (em seu segundo ano como vigilante): ao perceber que o Charada, um psicopata megalomaníaco, identifica-se com a frase “eu sou a Vingança” proferida por seu eu como Batman, Bruce Wayne, que até então era cada vez mais consumido pelo “animal noturno” que se escondia atrás da máscara do homem-morcego (daí a composição igualmente sombria de Robert Pattinson como Bruce), toma a decisão que concretiza-o como herói: ao invés de tornar-se vingança, ele escolhe ser a esperança de Gotham City.
Este encerramento evidencia, mais uma vez, como o diretor e roteirista Matt Reeves, apesar de toda a ambientação sombria na qual situa sua história, ainda se interessa pela jornada de seu protagonista como um herói dos quadrinhos; evitando assim que sejam cometidos enganos: The Batman é, sim, um filme de super-herói. E um grande filme. Orientado pela perspectiva singular de um diretor autoral como Reeves, que compreende a potencialidade do cinema para a construção de um Batman que investiga, vigia e governa pelo olhar (elemento central da linguagem cinematográfica), ao passo que torna-se um com a cidade pela superfície imagética, de modo a ecoar sua mitologia de maneira específica à sétima arte.
Nota do crítico:
Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular.
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