Antes da ascensão das redes sociais, Peter Weir já antevira o fascínio gerado por vidas construídas para soarem espetaculares
“Já estamos cansados de atores com emoções falsas. Cansados de pirotecnia e efeitos especiais. Embora o mundo em que habita seja, de certa forma, falsificado, Truman não tem nada de falso. Não tem roteiros, nem deixas. Não é sempre Shakespeare, mas é genuíno. É uma vida.”
Instagram. Reality Shows. Redes sociais. BBB. Vlogs. TikTok. Muito antes dessas palavras se tornarem termos comuns no nosso dia-a-dia, a ponto de todos fazerem parte da discussão mesmo que não necessariamente estejam interessados por ela — você pode não ser um espectador do Big Brother, mas acabará acompanhando de forma indireta, queira ou não —, o diretor Peter Weir já trazia estes temas, à sua própria forma, em seu brilhante O Show de Truman: O Show da Vida (The Truman Show).
O ano era 1998 e a internet como conhecemos hoje ainda engatinhava, mas Weir praticamente previra certas tendências, o que faz com que seu drama com toques de comédia soe, ainda hoje, como um filme atemporal. E não à toa, pois quase um quarto de século de sua estreia, O Show de Truman reflete sobre muitos aspectos da vida cotidiana e, principalmente, como lidamos com o mundo ao redor, agora concentrado em uma telinha ao alcance das mãos. E se para a geração atual, O Show de Truman parece um longo episódio de Black Mirror — e vale lembrar que o roteiro de Andrew Niccol guarda similaridades com episódios da clássica Além da Imaginação, espécie de "predecessor" de Black Mirror —, é no mínimo interessante notar em 1998 já se faziam presentes na obra algumas temáticas que hoje parecem inerentes à nossa vida.
Da mesma forma, O Show de Truman brinca com as expectativas do protagonista de uma forma quase provocativa, que também levanta uma certa paranóia de estarmos sendo observados. Algo que evoca a narrativa de 1984 — obra de George Orwell onde o termo ‘Big Brother’ se originou —, publicado mais de quarenta anos antes do filme de Weir, mas que carrega a mesma contemporaneidade. Este medo da falta de privacidade — cada vez mais acentuado graças à supervigilância e a tecnologia de ponta — é tão real que o protagonista acabou batizando a Síndrome de Truman, onde pacientes acreditam que sua vida está sendo vigiada e dirigida por alguém. E certamente é um dos aspectos mais bem utilizados para criar uma sensação claustrofóbica em determinados momentos da obra.
A paranoia relacionada à perda da privacidade já era temática notável para os anos pré-bug do milênio, com obras como O Demolidor de Marco Brambilla e Inimigo do Estado de Tony Scott abordando o assunto enquanto a internet dava seus primeiros passos — comparada ao que vivenciamos hoje —, enquanto reality shows trazem um tipo de vigilância como característica inerente em uma estrutura narrativa que é prazerosa para o espectador. Esse contraste, entre o medo de ser vigiado e o prazer de assistir, surge no roteiro de Niccol e orbita a narrativa enquanto nos encantamos, nos identificamos, e tememos por Truman.
A fala citada no começo desse texto, é introduzida na obra junto dos créditos iniciais que não se tratam do filme de Weir, mas sim do programa protagonizado por Truman Burbank (Jim Carrey, em uma performance assustadoramente marcante) e que é o foco da obra. Ou seja, o espectador do filme já se encontra, a partir do primeiro minuto, como um espectador — indireto — daquele “Show de Truman”, o programa televisionado há 30 anos que transmite, para o mundo inteiro, cada minuto da vida do protagonista desde seu nascimento. Claro, sem que o personagem saiba.
A realidade ao redor de Truman, apesar de não ser completamente roteirizada, é manipulada para mantê-lo dentro daquela bolha, tão engajante a ponto de manter sua audiência por três décadas consecutivas. O puro e verdadeiro conceito de Reality Show, como vemos aos montes nos dias de hoje, com a única diferença sendo a consciência do personagem sobre sua realidade. “Aceitamos a realidade que nos é imposta”, diz Christof, o criador do programa interpretado por Ed Harris, mas O Show de Truman pode ir muito além da tal alegoria à Caverna de Platão. Essa, por sinal, chega a ser uma interpretação rasa diante de tudo que a obra pode provocar.
É notável, por exemplo, como o próprio Truman demonstra seu incômodo com aquilo em diversas maneiras. A realidade que lhe é imposta não é aceita com tanta facilidade como Christof aponta. Seja por um erro ao derrubar uma luz do estúdio no meio da rua, seja provocado por um sentimento indomável ao conhecer Sylvia (Natascha McElhone) — o amor, de todas as emoções, provavelmente é a menos “roteirizável” de todas —, Truman está constantemente flertando com a ideia de sair da cidade e encontrar seu lugar. Tomar a vida em suas mãos.
Tal ideia é constantemente barrada conforme Christof, por meio dos diversos personagens do show, modifica o cenário para desmotivar Truman. Às vezes de maneira explícita — a professora dizendo que não há mais nada a ser explorado no mundo —, em outras de forma mais subliminar, como as mensagens no jornal que reforçam como Seahaven, a cidade fictícia do show, é perfeita e é tudo que seus cidadãos precisam conhecer; ou os avisos assustadores nas paredes da companhia aérea da cidade. Sempre que o personagem periga dar um passo para fora de sua “Caverna”, Christof corrige seu curso para mantê-lo preso à sua realidade fabricada. Christof é capaz, até mesmo, de forjar uma situação traumática para tal, demonstrando sua crueldade para com Truman, além de uma egolatria digna de alguém que se apresenta como “O Criador”, criando em torno de si uma aura divina.
Christof não é muito diferente daqueles que assistem o BBB por “interesses sociológicos”. Embora exista, sim, um paralelo entre observar o comportamento humano e assistir a um reality show — principalmente quando os “personagens” estão confinados —, a verdade é que há um certo senso de voyeurismo — por vezes beirando o sadismo — que atrai o olhar humano para a vida do outro. E se reality shows não são um exemplo tão certeiro — afinal, não é todo público que tem interesse neste formato de programa —, o que dizer das redes sociais? Quantas pessoas podem dizer, honestamente e sem hesitar, que não fazem parte deste “vício” coletivo?
Há um clique de distância, é possível assistir milhões de vidas alheias. A vida de celebridades, artistas de todas as áreas, amigos próximos — ou nem tanto — e de familiares são o “Show da Vida” que todos consomem. Em 2022, já fazem 12 anos que o Instagram existe, quase metade do tempo de transmissão do Show de Truman dentro do filme. E a rede social, embora dê seus sinais de vida, não aparenta estar perto de acabar, reformulando-se sempre que necessário para reter a sua audiência de milhões de usuários. E enquanto discursos e movimentos para apontar os efeitos danosos desta e de outras redes sociais se fazem cada vez mais presentes, a verdade é que estamos todos parados assistindo a vida do outro, que é tão ou mais — bem mais — forjada que a Seahaven criada por Christof. Até mesmo stories de bebês feitos pelas mães são projetados e programados para gerar engajamento. Muito menos espontâneos do que parecem.
E não só engajamento, como dinheiro. O termo “publi” é outro cujo entendimento é quase universal: influenciadores vendendo produtos atrelando sua imagem — logo, sua autoridade — a eles. A artificialidade em O Show de Truman é calculada para causar a estranheza no espectador enquanto mantém a credibilidade daquele mundo, mas Peter Weir tratou de trabalhar uma verdade constante naquele universo: tudo está à venda. Como na história, o programa é exibido 24 horas por dia durante toda a semana, não há espaço para comerciais, logo, dentro daquela realidade projetada, é necessário criar um tipo de marketing, seja com a própria imagem do protagonista, seja através dos coadjuvantes — o melhor amigo com a cerveja, a esposa com a faca de legumes —, que fazem seu próprio formato de propaganda. É a “#publi” antes das redes.
É curioso voltar o olhar para alguns anos e notar como tudo estava direcionado a televisão. Celebridades eram formadas ao aparecer na tela, diante dos olhos de toda a família sentada à frente do aparelho. E suas presenças em comerciais podiam determinar o sucesso — ou fracasso — de um produto. Não mais. Hoje em dia, a máquina da internet pode fabricar um famoso em questão de dias, lançando influenciadores e subcelebridades ao estrelato. Alguns somem tão rápido quanto surgiram, mas outros conseguem usar as plataformas para manter sua relevância.
E daí, surge o fascínio. Fascínio de conhecer mais sobre estes, pouco antes, estranhos. Queremos saber quem são, o que gostam, como vivem. Qual será a próxima viagem, ou com quem estão se relacionando. Ansioso para ver um vlog da casa nova. É a espetacularização da vida comum. Milhões e milhões de Truman’s, auto fabricados e conscientes de seu status perante aqueles que estão assistindo. Manipulando sua própria realidade ou exibindo apenas o necessário para manter o interesse do público. E sua autoridade. E suas vendas.
Quanto ao resto de nós? Seguimos engajados.
Lista de favoritos do redator
Pânico | Wes Craven, 1996
O Poderoso Chefão | Francis Ford Coppola, 1972
O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei | Peter Jackson, 2003
Aladdin | Ron Clements e John Musker, 1992
O Mágico de Oz | Victor Fleming, 1939
O Show de Truman | Peter Weir, 1998
O Auto da Compadecida | Guel Arraes, 2000
Homem-Aranha 2 | Sam Raimi, 2004
A Rede Social | David Fincher, 201
Vingadores: Guerra Infinita | Joe e Anthony Russo, 2018
O Lobo de Wall Street | Martin Scorsese, 2013
Era Uma Vez Em... Hollywood | Quentin Tarantino, 2019
Homem de Ferro | Jon Favreau, 2008
A Bruxa | Rober Eggers, 2015
Laranja Mecânica | Stanley Kubrick, 1971
Cidade dos Sonhos | David Lynch, 2001
Rocky | John G. Avildsen, 1976
Garota Exemplar | David Fincher, 2014
O Gigante de Ferro | Brad Bird, 1999
Amor Sem Escalas | Jason Reitman, 2009
Esse texto pertence ao nosso especial Favoritos da Cine-Stylo: Uma lista com os filmes prediletos de nossos redatores e 11 textos para discorrer um pouco dessa paixão. Acesse!
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