top of page

Mike Leigh e a habilidade de tradução do cotidiano

Mike Leigh foca nas necessidades dos personagens, transformando imagens do dia a dia num mosaico de relações humanas.




O cotidiano é formado diariamente através da repetição, de gestos, atos e até palavras que se confundem facilmente com um tipo de apatia que se torna comum. De tanto vermos as mesmas pessoas e passarmos pelos mesmos locais, nos acostumamos a agir sem pensar, e aí surgem as fórmulas protocolares de convivência: o "bom dia" atravessado, o semblante de decepção da esposa que mal vê o marido porque ele é consumido pelo trabalho e não tem tempo para a família, os vizinhos que espiam a vida uns dos outros, mas não sabem o que fazer com o tipo de informação que apuram, e por aí vai. 


Mike Leigh, 82, confina essas pessoas em apartamentos e espaços fechados, onde elas são obrigadas a se relacionar minimamente e ainda assim não conseguem, porque suas emoções já foram filtradas pela monotonia aparente do tédio, e a vida no subúrbio inglês é desesperançosa para suas personagens, trabalhadoras de classe média com empregos que trafegam na esfera do ordinário, com funções em sua maioria manuais, com pouco uso de tecnologia e muito suor. 


Mesmo que elas busquem algo a mais, não existe um movimento de ascensão. A vida se perpetuou em um estado em que os idealistas de seus filmes não são assim tão sonhadores, porque sabem que ficar sentado na cadeira no fim do dia é o que resta, e a revolução é uma utopia eternamente postergada para a geração seguinte. Ainda assim, sempre há um momento de catarse, de embate quase que pessoal entre dois ou mais atores que improvisam o texto e transformam suas personagens na versão mais humanizada possível do que estava previsto no roteiro antes das filmagens, como se o momento fílmico fosse o equivalente a uma parte da vida que eles levam do lado de fora.


Salva uma ou outra exceção em sua carreira, o cinema de Leigh está interessado em destrinchar o desenvolvimento das relações nesses espaços e como elas dizem muito a respeito das condições estruturais (sociais, econômicas e até culturais) da família média britânica. Dois de seus filmes mais interessantes foram lançados em um curto espaço de tempo, de 1988 para 1990, e ilustram o que se configurou como “Realismo Social”, um tipo de retrato das dinâmicas de poder na sociedade, em que a elite que perpetua desigualdade e sofrimento é colocada em cheque quando entra em ruptura com o outro lado da moeda. 



Um deles chama “Grandes Ambições” (1988), um filme que dá vazão a um romance sincero e saudável, retratado com delicadeza e cautela, entre duas pessoas com pensamentos diferentes, enfiado às pressas dentro de um outro onde há uma estagnação de personagens preguiçosos e folgados. Por um lado, há a hamornia. Por outro, um rompimento do desenvolvimento de relações e dos ideais que as sustentam. 


Os protagonistas são Cyril (Philip Davis) e Shirley (Ruth Sheen), possivelmente um dos casais mais amáveis já enquadrados em uma série de cenas de cinema. Ela não esconde o desejo de ser mãe e ele tem suas ideias bem estabelecidas e até vê espaço para mais pessoas no mundo, mas se preocupa com o estado das coisas e como as crianças serão tratadas diante de tanta hostilidade. A mãe de Cyril, interpretada por Edna Doré, mesmo com sinais aparentes de alzheimer, carrega um cuidado e uma noção de espaço maior do que quase todo o resto das figuras representadas, demasiadamente ingênuas ou egoístas e mesquinhas em um nível em que são ridicularizadas pelo olhar de Leigh.


O ápice do constrangimento é o núcleo do casal de yuppies, regrados à hipocrisia, sustentados pelas caras e bocas de uma Lesley Manville flagrada pela câmera de Mike Leigh sempre em posição de deboche, uma espécie de autoritarismo não condicionado, uma sátira ao estilo de vida dos novos ricos da época. 


Em “A Vida é Doce” (1990), seu filme seguinte, o que o título propõe até entra em cena, mas é parcialmente descartado por uma visão cínica e pouco estável da realidade de uma família com problemas financeiros, mas também emocionais. A solução para as questões abordadas? Passear pelo interior desses sentimentos, com um uso nada econômico e pouco discreto de ironia. O retrato das relações familiares e as descrições de personalidade de cada personagem sempre pressupõe pequenas idiossincrasias que particularizam muito a dinâmica da interação. A jovem Nicola, vivida por Jane Horrocks, por exemplo, não é apenas uma garota retraída que tem bulimia e dificuldade de conviver socialmente. Na verdade, sua principal característica é mais contida do que exposta: tem muita raiva e energia acumulada para dentro que não expõe.



Nicola vive com sua irmã gêmea, Nat, papel de Claire Skinner, mais interessada em fazer companhia à família. Seus pais, Wendy (Alison Steadman) e Andy (Jim Broadbent) se comunicam por um dialeto próprio que, às vezes, esbarra nas vontades de Nat, mas é inacessível para Nicola, que se expressa por meio de frases curtas com ponto de exclamação e dificilmente fica em um lugar que não seja o seu quarto por mais de cinco minutos.


Por isso, a cena em que Nicola e sua mãe têm a oportunidade de conversar e esclarecer o porquê de haver tanta incoerência e ressentimento entre elas, funciona tão bem. O filme todo segue uma linha naturalista, mas, assim como Nicola, guarda para o final o que desde o começo está tentando aparecer: o clímax, a expurgação desses sentimentos tão mal trabalhados. Não é um filme doce, mas também definitivamente não é arisco. Tem a dose certa de sentimentalismo quando preciso.


Os temas que Leigh aborda, ao mesmo tempo que refletem diretamente o lugar de fala e a incumbência social também apontam para caricaturas curiosas e comportamentos desviantes ou excessivos que afastam por alguns minutos de divagação a câmera e o estilo do diretor da realidade e caem no lado da sátira, quase de uma sitcom séria em que o riso é sempre de nervoso. 


O fato é que o diretor, cedo ou tarde, dá um jeito de unir todo mundo no quadro em algum momento e direcionar relações distantes em um caminho possível através de um mosaico sempre dinâmico de interações. Os temas muitas vezes se metamorfoseiam em algo mais, e se distanciam muito do planejamento inicial de abordagem, se enraizando mais no comportamento particular de cada personagem, sem necessariamente causar algum tipo de segregação. 


Ele traz muito o olhar da mulher, sobre a busca pela independência e a complexidade da maternidade, mas também enxerga o racismo como um problema de origem sistêmica e trabalha com diversos tipos de compulsões e transtornos que às vezes até justificam ou resguardam traços de personalidade que nunca aparecem por completo de maneira agradável. 



Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:



Comments


bottom of page