Depois de um ano e meio de negligência, a Cinemateca Brasileira, enfim, se reergueu novamente sobre a A Praga de Mojica.
A Cinemateca Brasileira abriu suas portas novamente nesta sexta-feira, 13 de maio de 2022, após ser condenada a um estado de semiabandono pelo total descaso e negligência do governo federal. A reabertura foi acompanhada de uma mostra em homenagem a José Mojica Marins, nosso eterno Zé do Caixão, um dos cineastas mais geniais e criativos que o Brasil pôde conhecer.
O que essa reabertura, e as mostras e exibições que virão, precisa significar para espectadores e cinéfilos brasileiros, é a existência desse lugar onde o debate cinematográfico precisa se estender além dos campos mais superficiais, impulsionar (re)descobrimentos e estimular ainda mais as manifestações cinematográficas no Brasil, exaltar mesmo a reunião de apreciadores da sétima arte em um mesmo ambiente para respirarem sensações, impressões e sensibilizações que uma sala de cinema, o ato de ver um filme coletivamente, acolhe. É tentar se colocar frente a sistematização mercadológica do cinema e falar, analisar, ver o cinema como cinema, a Cinemateca como todo esse espaço tal qual Paulo Emílio Sales Gomes idealizou um dia.
Este que vos fala teve a oportunidade de comparecer no primeiro dia da mostra, na reabertura oficial do espaço, para presenciar, junto de mais de quinhentas pessoas, a exibição inédita em terras brasileiras do média-metragem A Praga (cuja outras duas exibições aconteceram no festival espanhol 54º Festival de Cinema de Sitges, e em Portugal, na 42ª edição do Fantasporto International Film Festival), que foi precedido pelo curta-documentário sobre a restauração do filme de Mojica, feita pelo produtor Eugenio Puppo – um trabalho primoroso e que me atrai muito, diga-se de passagem.
Antes, o contexto para a concepção de A Praga. A história original teve origem ainda na televisão, como parte de um programa da TV Bandeirantes chamado “Além, Muito Além do Além”, apresentado pelo próprio Mojica como Zé do Caixão, tendo como roteirista de cada episódio Rubens Francisco Lucchetti; a fita do episódio foi perdida pela emissora.
A história, entretanto, não desapareceu completamente: em março de 1969, o episódio foi publicado por Mojica e Luccheti como uma história em quadrinhos pela editora Prelúdio, desenhada por Nico Rosso.
Dez anos depois, em 1980, munido de uma Super-8, José Mojica decidiu filmar a mesma história para o cinema, mas a falta de recursos o impediu de continuar o filme.
Finalmente, em 2007, como parte de uma retrospectiva dedicada a Zé do Caixão, o produtor Eugenio Fruppo encontrou os rolos do filme em um saco de lixo, no escritório do cineasta. Junto de Mojica, decidiram finalizar o filme: gravaram novas cenas (algumas delas sendo com o próprio Mojica como o apresentador da história), novas dublagens, o filme passou para a pós-produção e foi exibido a um número limitado de espectadores ainda em 2007.
Com a morte de Mojica em 2020, Eugenio decidiu lapidar ainda mais a obra, agora digitalizada, com nova correção de cores e sons e em alta definição.
Enfim, sexta feira 13: nos jardins da Cinemateca, em um telão ante às dezenas de cadeiras, sobre a magia supersticiosa da data, A Praga veio ao Brasil.
A premissa de A Praga segue uma estrutura de contos de terror bem direto ao ponto: Juvenal e Mariana, um jovem casal de namorados, encontram a casa de uma velha senhora durante uma breve viagem; a velha, enfezada pelas provocações maldosas de Juvenal, roga-lhe uma praga (“Suas carnes se abrirão em cancro, cairão em pedaços e arderão como brasas!”).
Afetado por terríveis pesadelos, Juvenal vai em busca de respostas racionais em um psiquiatra, mas o remédio indicado não surte efeito; os pesadelos e visões continuam, pior: corrompe lentamente a mente de Juvenal. Mariana surge com a ideia de ambos visitarem a velha novamente para que Juvenal obtenha seu perdão e, enfim, acabar com a maldição.
A visita rendeu uma outra surpresa ao casal: a bruxa morreu; e pior: concretizou a praga.
Daí, parte a irrupção que José Mojica sempre ostentou em seus filmes: soluções criativas e singularmente engenhosas em lidar com os recursos limitados, levando isso como a própria estética de seu filme. Aqui, a constante claustrofobia na intensidade em que a câmera engole o rosto e corpo das personagens refletem precisamente nesse sentido: se é preciso que se gaste pouco, Mojica transforma a praga da bruxa em uma verdadeira perturbação cênica, caminhando nos limites da aproximação e assimilação do que é filmado com o que existe perpetuamente (a maldição).
Assim, a maldição, irreversível, gradualmente se intensifica com o passar dos dias. Juvenal começa se alimentando de carne crua, mas logo passa a ter visões cada vez mais repulsivas e constantes de sua namorada traindo-o. E para realizar tais sequências de pesadelos imagéticos, causados pelas constantes aparições da velha na mente de Juvenal, Mojica amplia seu êxito inventivo que sempre teve em trazer pulsões abissais e grotescas através do que conseguia fazer com bem pouco (todo o caráter marginal do seu cinema).
A praga da bruxa, então, consome o corpo e mente de Juvenal, alcançando mesmo os meandros bizarros do body horror: a maldição forma um cancro que precisa ser alimentado. Possuído pela falsa crença de que sua namorada vai deixá-lo, Juvenal mata sua namorada; logo depois, é persuadido pelo fantasma da bruxa para que alimente seu cancro com o corpo morto da namorada. Em um desses momentos onde a proeza visual reflete a singularidade grotesca da narrativa, vemos o estômago necrosado de Juvenal engolindo o corpo da mulher.
Toda a autenticidade do cinema de Mojica se condensa apropriadamente nessa média minutagem de A Praga, que precisa e deve ser mais visto e revisto assim como a obra de Mojica precisa ser descoberta e redescoberta, e a Cinemateca precisa continuar viva!
E que viva eternamente José Mojica Marins!
Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:
Comments