Compilado dos curtas da programação da mostra de Outros Olhares do 11º Olhar de Cinema.
LABORATÓRIO NO. 2
Dir: Edris Abdi, Awara Omar
A pia goteja. A sala escura vagamente iluminada revela cadáveres de estudo para uma universidade, delicadamente cuidados por um idoso; sua rotina virou ritual, os cadáveres viraram seus amigos. A reflexão sobre a morte parece inevitável, mas ela logo se torna sua companheira também. A imagem mais forte do filme: o idoso deitado na cova aberta que comprou no cemitério. A morte o espera e ele espera a morte para se juntar aos seus amigos cadáveres; até redigiu uma carta-testamento para que deixem seu corpo ali mesmo, junto com os outros. As formas modulares (a água sendo derramada) contrasta com as linhas rigorosas da sala da autópsia, engolida pelas sombras. Produzido por Edris Abdi e Awara Omar, ambos cineastas do Curdistão, a câmera registra mais do que participa, mas não estaria ela participando ao registrar? O tato para a sensibilidade desses planos vai se tornando mais frio à medida em que acompanhamos cada vez mais a rotina mórbida deste trabalhador, mas não necessariamente investiga aqueles planos; em alguns momentos soam mais como vaidades estéticas. O que fica certamente é a imagem final dos corpos, um vivo e outro morto, que se confundem no jogo de luz-e-sombra: o vivo na sombra, o morto na luz.
SE NÃO HOUVESSE LUTA
Dir: Jared Katsiane
Parece que os cineastas americanos sentem a necessidade de serem urgentes quanto às mais recentes discussões políticas, mas esquecem que a forma fílmica do cinema, quando bem orquestrada, é por si só bastante política. De Straub-Huillet à Godard, passando mesmo por Charles Burnett e seu cinema independente, para ficar em poucos nomes, o que é político é impregnado na estrutura do filme. Essa cartografia urbana/política de Jared Katsiane – que traça um caminho pelos monumentos de figuras importantes para o ativismo negro nos Estados Unidos pela câmera de uma garota – é brando demais para ostentar a força revolucionária destas vozes, por vezes soando quase conciliador. As imagens não são levadas às potências interiores que possuem se não for pela exposição do texto.
TOLI
Dir: Diana Mashanova
Delicadeza e frivolidade, menos a primeira e mais a segunda, caminham juntos em Toli. Isso porque é muito fácil cair em um ou outro quando se tenta tornar tudo tão solene e sincero; tão pessoal quanto frio, tão particular quanto distante. É comum que se traga esse tipo de abordagem para narrar a crônica de uma adolescente que procura a fuga dos seus problemas internos – a ausência do pai, o novo namoro da mãe – em outros lugares, em outras pessoas, e talvez exista um ou outro plano que possa conciliar essa linha tênue entre distância e pessoalidade, mas Diana Mashanova dificilmente concilia as duas coisas, mesmo em close-ups. Os assuntos latentes são deixados ao léu, a morosidade das cenas não leva a lugar nenhum e não parece que estamos vendo essa tragédia cotidiana. A bem da verdade, às vezes parece um filme americano independente contemporâneo ou um comercial de prevenção à gravidez na adolescência – e não sei o que é pior entre os dois, visto que as duas coisas andam se confundindo recentemente.
ATÉ A LUZ VOLTAR
Dir: Alana Ferreira
Nina é uma mulher trans que vive em uma relação conturbada com seu namorado; ambos moram juntos, em uma periferia, são religiosos e costumam ver esses cultos televisivos de igrejas protestantes (o papel com o rosto do Edir Macedo colado na parede também confirma). Uma crônica bem direta e crua sobre as contradições sobre a relação dessas pessoas marginalizadas com a religião, mas essas mesmas contradições não chegam a se tornar uma dialética dentro do filme mesmo. Talvez seja preciso se interessar mais em refletir as circunstâncias dentro da própria estrutura fílmica do que tentar explicá-la convencionalmente, demonstrá-la não apenas no texto, mas também na abordagem dos elementos em cena, como Kenneth Anger (de Scorpio Rising) ou Claire Denis (de Noites Sem Dormir [J'ai pas sommeil]) quando investigam corpos, sensações, toques, gestos, espacialidade e corpos dentro dessa espacialidade claustrofóbica, coisas que não acontecem quando a condução é mais conveniente. Ora, se estamos falando dessas pessoas que vivem a marginalidade, porque encaixá-las no convencional? Talvez o que precisamos seja recuperar a herança do marginal, que talvez nunca tenha sido continuado para poder ser investigado e amadurecido; Ozualdo Ribeiro Candeias nos ensina bem, só falta aguçarmos nossa percepção para vê-lo.,
Texto escrito para a Cobertura da Cine-Stylo do 11º Olhar de Cinema. Acesse o site do Olhar de Cinema para conferir toda programação online do festival.
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