Harmonizando realidade e mitologia, Robert Eggers demonstra paz com o destino.
O Homem do Norte, novo filme de Robert Eggers, concilia muitas dualidades; a mais explícita, que o protagonista Amleth entende como o grande dilema da sua vida, é entre o amor e o ódio. Ele é movido pelo ódio que se iniciou em seu amor e, por mais bruto que seja, também demonstra cuidado e piedade. Em certo momento, sua resposta a esse dilema se torna o amor: fugir com Olga, sua amante, e não concretizar sua vingança odiosa (que o motivou em sua jornada até ali). Entretanto, ele descobre a gravidez dela e compreende, de uma vez por todas, o papel do amor em sua jornada. O amor faz parte de seu destino tanto quanto o ódio. “Eu escolho os dois” é o que ele diz para Olga. Abrir mão de uma vida ao lado dela é o único ato compatível com aquele romance predestinado pelos deuses, justamente porque se baseia no destino — elemento-chave do filme que harmoniza amor e ódio.
A dualidade mais fundamental, contudo, é entre o real e o simbólico — ambos desenvolvidos meticulosamente e relacionados, gerando uma síntese que serve como epicentro da obra. Tal operação também ocorre nos demais filmes do diretor, mas com uma grande tensão entre os dois elementos, uma desarmonia fundamental. Nesse novo filme, contudo, eles estão em harmonia. Quando o jovem Amleth passa por um rito de amadurecimento com seu pai, ele tem visões sobrenaturais que, embora façam parte de um estado alterado de consciência, integram a camada mais profunda de realidade naquele mundo. Assim como as visões que ele volta a ter no decorrer do filme. Não temos dúvidas sobre a realidade dessas visões espirituais, porque a espiritualidade é real. Mesmo quando Amleth se vê a caminho de Valhalla apenas em sonho, o que existe é o anseio por sua passagem — o alívio daqueles conflitos. É isso que mais distingue esse filme no trabalho de Eggers: os símbolos mitológicos não se referem a outras coisas, mas à própria mitologia.
Eggers lança mão de planos longos e planos-sequências de modo a preservar a autoridade da realidade (algo básico do realismo conforme proposto por Bazin), mas os manipula amplamente para evidenciar o caráter espiritual do que representa. Por exemplo, a cena em que os vikings fazem seu ritual de incorporação dos lobos ao redor de uma fogueira possui um único plano, que começa fechado num viking mais velho, centralizado e de frente pra câmera. A câmera vai para trás conforme ele anda ao redor da fogueira e uma imagem completa do ritual nos é apresentada, com o viking velho cantando, centralizado num plano geral à contraluz. Com muita naturalidade, nos tornamos a plateia daquela apresentação extremamente artificial (como rituais costumam ser). Então, a câmera vai para frente outra vez, de modo a se fechar no protagonista. Esse único plano consegue revelar a força individual e coletiva daquele ritual; nos inserir e nos distanciar. Como em várias cenas ao longo do filme, o ritual ganha uma dinâmica cinematográfica especialmente fidedigna, resultando na revelação da força invisível por trás daqueles gestos. A vida parece um culto.
Na nossa cultura, é comum acharmos que o acaso rege a vida, mas Eggers, que parece ter problemas com o secularismo, não acredita na existência da realidade sem destino. O mundo só existe porque os deuses o fizeram existir e tudo o que acontece tem um propósito, mesmo que geralmente não pareça.
Outro momento exemplar é o do já citado rito de amadurecimento do jovem Amleth, em que planos extremamente fechados nos rostos das personagens dominam a tela. Nesses planos, as personagens estão num cenário neutro escuro, iluminados por uma luz bruxuleante amarela e envoltos em fumaça, sempre de frente para a câmera e centralizados. A montagem governa, contrariando o princípio realista dos planos longos, mas as trocas de um personagem pro outro geram um efeito estranho no público, porque, ao mesmo tempo que são imagens diferentes, elas se parecem muito. Funciona como um encanto. O grande momento em que a “realidade” nos comunica “sem cortes” é aquele em que o jovem Amleth olha para baixo e se percebe flutuando sobre um espelho de seu mundo (ou algo assim). A câmera rotaciona quase completamente e volta a mostrar a ação “normal” de antes. Embora fabricado digitalmente, esse plano é importante no desenvolvimento estético de uma forma de enxergar o mundo. Tudo flui magicamente e imagens que não deveriam se encaixar se encaixam com perfeição. É lindo. Existe uma unidade divina naquele caos.
Em seus dois primeiros longas, A Bruxa e O Farol, Robert Eggers demonstrou um olhar bastante trágico sobre o mundo, representando o destino como intimamente relacionado aos vícios das personagens. O mundo parecia uma prisão porque o coração humano aprisiona. O transcendente apavora nesses dois filmes por estar além do controle humano — afinal, se Deus existe, estamos à mercê dele. Contudo, uma mudança fundamental ocorreu em O Homem do Norte: o transcendente deixou de ser visto na perspectiva limitada de um ser humano pecador e passou a ser visto de modo mais religioso. O destino, que o aterrorizava tanto, foi abraçado com coragem. O cineasta segue explorando os vícios e amarras da vida, mas, pela primeira vez, contempla os portões de Valhalla abertos.
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