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Mentoria sem afeto: Um laço de teimosia formado em A Cor do Dinheiro (Martin Scorsese, 1986)

Apostando em uma faceta urbana mais preocupada com o impacto comercial da década, a partir da segunda metade dos anos 80, Martin Scorsese, como cineasta que também é cinéfilo, presta uma homenagem justa a um filme que tem em alta estima



Saindo de uma bem repercutida década de 70, o diretor Martin Scorsese sentiu o impacto cultural de um novo ciclo para os Estados Unidos e a dinâmica das ruas, que dita o ritmo de suas obras passou a ser mais acelerada, movida pela urgência do capitalismo. Ao retomar a identidade de uma personagem apresentada ao público em outro filme, Scorsese fez de seu A Cor do Dinheiro uma sequência “espiritual” de um clássico com Paul Newman, Desafio à Corrupção (Robert Rossen, 1961), onde o ator interpretava Eddie Felson, vivido com uma pose sábia e autoconfiante de personalidade impenetrável que esconde uma melancolia de viver às custas do próprio reflexo, e aqui não é diferente, mas anos depois, exatamente na transição de galã indomável dos anos 60 para um homem de meia idade igualmente charmoso, agora com cabelos brancos.


No original, Newman já fazia o papel de adolescente birrento no corpo de um adulto, mas ainda era um aprendiz de jogador de sinuca, um apostador com muito talento, mas pouca imposição de caráter para além de algumas palavras de rebeldia e desaforo.  Se, ao ler isso, você achou que em uma sequência “espiritual” do filme original Felson teria aprendido algo, você errou.


Felson agora aparenta ser a voz da sabedoria, talvez um mentor para um garoto inconsequente que seja como ele era. Acontece que ele vende uma aparência de renovação para perpetuar a mesma fórmula de um competidor teimoso, que vê no álcool uma conquista e no jogo uma obsessão. Agora, ele precisa de um discípulo, e é um jovem Tom Cruise, (o próprio rosto dos sucessos comerciais oitentistas) no papel de Vincent Lauria, que corresponde à isca para o seu pré-definido projeto de mentoria e substituição de figura paterna que não cuida em tempo integral, só quando o orgulho permite. A namorada de Vincent, Carmen (Mary Elizabeth Mastrantonio), é mais esperta e participativa do que os dois homens que disputam a própria honra em sua frente. A posição dela não é passiva. Ela não é só namorada, mas também não é empresária. Dela, saem posicionamentos, visões práticas de como posicionar as peças de entrada e saída de egos feridos.


Eddie encontra Vincent em uma falsa impressão do acaso. Ele já tinha o olhar treinado para ser aplicado em uma cobaia eficiente, que cumprisse exatamente o que fosse pedido, até ser obrigada a descumprir. Como o iniciante tem que sempre deixar uma bela impressão para o veterano, o primeiro contato dos dois é cheio dos flashes instantâneos, dos cliques que mais parecem servir a demandas publicitárias, da exibição de quem acha que ganhou quando o jogo sequer começou.


Aliás, Scorsese sabe exatamente que está dirigindo um subproduto dos anos 80. Não é à toa que, nessa mesma década, ele foi o responsável pela gravação do videoclipe de Bad, de Michael Jackson. Sua sensibilidade urbana se aliou à sua capacidade de gerar e escrever roteiros em torno do dinheiro, e, assim, pôde se desfazer do instinto mafioso preenchido pela sonoridade intensa dos Rolling Stones em obras como Caminhos Perigosos e, posteriormente Os Bons Companheiros, para se entregar de vez aos teclados, sintetizadores e às vozes melosas de figuras como a banda Dire Straits e o cantor Phil Collins, além da trilha sonora original de Robbie Robertson, que introduz o telespectador ao clima decadente de um salão de sinuca como se estivesse descrevendo um bar do velho oeste. A imaginação de qualquer ouvinte de rádio que tinha que pegar estrada de madrugada e se entregava aos hits e às sensações da época foi incorporada pelo diretor e pelo espírito de seu filme.


Existe um cinismo muito evidente na condução da relação entre Newman e Cruise, mas não é sinônimo de amargura, e sim de segurança e uma visão despreocupada, até descolada de mundo. Talvez, em algum filme mais clichê, fosse estabelecida uma relação de amizade ali, mas um deles sempre tem que ter ou demonstrar uma intenção acima da expectativa do outro. É uma relação de poder, o resto é consequência.


Se na maioria dos filmes do cineasta, o poder é exibido pela violência, pela imposição física, aqui é o domínio verbal que faz alguém estar no topo. Sem uma lábia de vencedor, você pode até ter sucesso, mas não vai conseguir seduzir ninguém para jogar ao seu lado. Não é sobre quantas rodadas você ganha, é sobre quantas pessoas você engana.


 

Nota do crítico:

 

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