Zack Snyder compreende, como poucos realizadores de blockbusters fantásticos contemporâneos, a importância da relação mitológica que estabelecemos com os quadrinhos de super-heróis; transmutando essa compreensão em cinema
Esse filme é o ápice da perspectiva mitológica do Zack Synder em relação aos heróis: ele entendeu a relação mítica que estabelecemos com esses personagens. Assim, a vinda de Darkseid em tempos mais antigos e seu retorno nos tempos atuais é um caminho que o diretor percorre do mito antigo ao mito contemporâneo, em que essa relação sensível com a realidade (possibilitada pelos mitos) perpetua-se.
Assim, Snyder eleva a realidade de seu filme para além da nossa. Com o uso assumido e exagerado do CGI, ele está sempre construindo planos grandiosos e que fazem do mundo de seus heróis não uma tentativa de simular o real (como busca o realismo da trilogia do Batman do Nolan ou mesmo alguns da Marvel), mas sim um suplemento metafísico ao nosso mundo — que, a partir da fantasia, nos faz olhar para nossa realidade com outros olhos. Isso é efeito do mito. Para adentrar mais a fundo em como a articulação mitológica de Snyder é certeira em transformar as características da fantasia em potencialidades para a forma cinematográfica (isto é, diferentemente da Marvel, em que os filmes trabalham com a fantasia mas não a assumem em sua mise-en-scène), quero explorar as ideias de Tolkien sobre o que é a fantasia, pois é a partir delas que continuaremos explorando a construção de uma mise-en-scène mitológica nesse filme de Zack Snyder.
Em seu ensaio “Sobre Histórias de Fadas”, J.R.R Tolkien aponta para três características da fantasia: recuperação, escape, consolo. Estas podem ser “funções” ou efeitos que os contos fantásticos são capazes de gerar no leitor ao colocar o mundo imaginário em tensão com o mundo real, de modo a fazer-nos enxergar a realidade com outros olhos após a experiência propiciada pela fantasia. A “recuperação” busca a retomada de um olhar infantil, de uma fascinação com o que nós tornamos triviais. Tolkien diz: “As histórias de fadas nos ajudam a realizar essa recuperação. Nesse sentido só o gosto por elas pode nos tornar, ou manter, infantis”. Tornamos as coisas triviais ao nos apossarmos destas, como o autor mais uma vez propõe: “Essa trivialidade é, de fato, apenas a penalidade da “apropriação”: as coisas triviais ou (no mau sentido) familiares são aquilo de que nos apropriamos, legal ou mentalmente. Dizemos que as conhecemos. Tornaram-se algo como as coisas que uma vez nos atraíram pelo brilho, ou pela cor, ou pela forma, e pusemos as mãos nelas e as trancamos em nosso tesouro, adquirimo-las, e ao adquiri-las paramos de olhá-las.”.
Vejamos, então, como Snyder propõe um olhar oposto à trivialidade? Como o diretor desconstrói um olhar familiarizado, de modo a propôr, justamente, a reconstrução? Bom, mais uma vez: tornando tudo o que vemos em tela fantástico, grandioso (nesse sentido, “anti-trivial”).
Cada plano do filme carrega um deslumbramento, mesmo nos momentos mais simples — como na conversa entre a mãe de Clark e Lois Lane em uma mesa, em que uma forte luz erradia da janela, criando uma composição muito pictórica. O novo olhar que encontramos na fantasia, pela recuperação, nos fazer perceber na realidade virtudes que antes tornaram-se triviais. Virtudes, estas, carregadas pelos heróis do filme de Zack Snyder, que são dignificados por suas características e mesmo fragilidades mais humanas: Clark lembra-se de quem é após sua ressurreição quando vê Lois Lane; Bruce Wayne está mergulhado em suas culpas, sofrimentos passados, e busca por sua reconstrução; Barry quer salvar o pai injustiçado; Diana está sempre carregando o luto da perda de um amor e a preocupação com suas irmãs; Victor precisa aprender a lidar com as falhas e desespero de seu pai que levou-o a buscar o “santo graal” que salvaria seu filho da morte; Arthur precisa lidar com as responsabilidades de assumir o legado de sua família. Dessa forma, em sua humanidade, os heróis de Snyder são dignificados. O que era trivial torna-se virtude.
Citando ainda mais uma referência de pensamento em relação ao mito, Joseph L Henderson diz em seu texto “Os Mitos Antigos e O Homem Moderno”, presente no livro “O Homem e Seus Símbolos”: “(…) é atribuição essencial do mito heroico desenvolver no indivíduo a consciência do ego — o conhecimento de suas próprias forças e fraquezas — de maneira a deixá-lo preparado para as difíceis tarefas que a vida lhe há de impor.” É nesse conhecimento de suas forças e fraquezas que desenvolve-se a potência heroica dos personagens que compõe a Liga da Justiça. Darkseid, por um outro lado (a representação absoluta do Mal), não possui relações humanas que permitem-no reconhecer suas fragilidades e por isso sucumbe em seu orgulho exacerbado, vítima da hybris (a confiança cega). Dentro dessa ideia, o constante medo presente nos sonhos de Bruce de que Superman irá em algum momento enlouquecer após a suposta morte de Lois é um indício de que suas maiores virtudes — pautadas no amor — surgem de sua maior fragilidade enquanto, também, humano.
No mesmo texto citado, o dr. Henderson reforça ainda a ideia de Tolkien da fantasia enquanto suplemento da realidade. Citando um texto do dr. Paul Radin, ele diz: “O mito do herói representa os esforços que fazemos para cuidarmos dos problemas do nosso crescimento, ajudados pela ilusão de uma ficção eterna.” Por isso, quadrinhos são sim tipicamente infantis — o problema é que atribuímos um significado negativo à infantilidade, quando, na verdade, a proposta da fantasia é o retorno a um deslumbramento infantil do que para nós se tornou trivial. E é o que Zack Snyder buscou em todos os seus filmes de heróis, mas transportando essa fascinação para um público adulto, que é justamente o público que abandonou a fantasia, que se apossou do mundo e não mais enxerga sua beleza. Por isso se faz novamente presente a articulação grandiosa e também “quadrinesca” da mise-en-scène do diretor.
Mas, continuando no que Tolkien propõe sobre a fantasia, exploremos agora suas duas outras “funções”: o Escape e o Consolo. O Escape não se trata de uma fuga do mundo real, mas sim de uma insatisfação com a realidade da forma que a temos. A fantasia, então, nos permite o Escape como forma de sonhar com algo maior, algo além da realidade, encontrado em seu suplemente fantástico. Do escape da morte (a ressurreição de Superman) ao escape do Mal, chegamos à última “função” da fantasia: o Consolo, que transmite a esperança. De forma simples, poderíamos dizer que é a ideia inconsciente que temos de que o Bem vence o Mal, de que há algo superior à nossa miséria, que nos permite superar o Mal — que jamais é totalmente inevitável. Mas esse Consolo surge, enquanto um final feliz, não negando o sofrimento. Pelo contrário, é preciso afirmar a catástrofe, a miséria, as fragilidades para, ao fim, exaltar-se o que Tolkien chama de “eucatástrofe” — a afirmação final da esperança, do triunfo do Bem. Ele diz: “O sinal de uma boa história de fadas, do tipo mais elevado ou mais completo, é que, não importa quão desvairados sejam seus eventos, quão fantásticas ou terríveis as aventuras, ela pode proporcionar à criança ou ao adulto que a escuta, quando chega a “virada”, uma suspensão de fôlego, um batimento e ânimo no coração, próximos às lágrimas (ou de fato acompanhados por elas)”.
É justamente isso o que Snyder consegue fazer, que o filme do mesmo grupo de heróis lançado em 2017 não conseguiu. No primeiro filme, Superman derrota o vilão rápida e repentinamente. No corte de Zack Snyder, é possível perceber a fraqueza humana do herói, que necessita de seus companheiros para derrotar por fim a ameaça, sendo todos fundamentais para a derrota de Lobo da Estepe e Darkseid. O triunfo praticamente divino de Superman no filme de 2017 jamais permite a catarse surgida pela eucatástrafe, que só pode existir porque o herói se dá conta de suas fragilidades — tal qual é o objetivo do mito do herói (como apresentado por Joseph L Henderson) — e de sua necessidade de união (uma ideia explicitamente presente durante todo o filme, e que se relaciona com a crença que a fantasia proporciona de que há algo superior para além da miséria em que nos isolamos). Portanto, se o universo mítico é um lugar que nos volta para a ação, que nos permite agir diferente na realidade ao nos propôr novas perspectivas sobre o mundo, somente o final apresentado por Zack Snyder em seu corte de “Liga da Justiça” nos permite essa relação com seu mito heróico.
Então, acreditando nessa capacidade de elevação do indivíduo pelo mito, o diretor não se envergonha em nada em atribuir características ritualísticas e religiosas em muitos momentos do filme, entendendo-as como simbólicas tal qual o mito que narra. Peguemos como exemplo a mitologia grega presente no universo da Liga da Justiça e, em contraposição, a mitologia nórdica nos filmes da Marvel. As produções desta última, que contam com Thor, Loki, Odin, parece envergonhar-se da presença religiosa desses personagens. Em geral, o universo mitológico-nórdico nos filmes da Marvel é escrachado. Por outro lado, Snyder teve uma coragem que os filmes com Thor, mergulhados em muito cientificismo e “realismo”, não tiveram: levar a sério e tratar da religiosidade intrínseca à mitologia, como na cena em que as amazonas lançam a Flecha de Ártemis para avisar Diana da invasão de Darkseid. Toda essa cena é grandiosa e ritualística, e a coexistência entre mitos antigos e a modernidade jamais faz com que um sobreponha o outro no filme. Pelo contrário, como apontei ao início desse texto, Snyder traça um paralelo do mito antigo ao moderno. O vocabulário utilizado para personagens como Superman e Darkseid também é assumidamente religioso, simbólico. Porém, Superman carrega as características do herói mítico enquanto um ser semidivino, que precisa dar-se conta de suas forças e fraquezas (e as percebe através de sua humanidade). Já Darkseid apresenta-se como um “deus” distante, e por isso mesmo cai em seu próprio orgulho. Também porque Darkseid é o Mal, e, pela eucatástrofe da fantasia, percebemos que não há Mal totalmente inevitável.
Logo, a humanidade de Superman e dos heróis da Liga supera as forças cósmicas do Mal, nos lembrando que é preciso reconhecer nossas fragilidades e forças para então enfrentar o Dragão, de modo a vencê-lo — porque não há o Mal último, mas sim a Alegria final. É dessa forma que Snyder faz o que o primeiro e mal-sucedido filme da Liga da Justiça não conseguiu: propiciar a inspiração, a elevação pelo mito. O diretor consegue isso ao assumir as características fantásticas de sua história, criando uma realidade deslumbrante que rejeita a trivialidade em prol da elevação do olhar proposta pela fantasia, incorporando o mito na forma de seu filme. Ou seja, o que torna a Liga da Justiça de Zack Snyder tão impactante é que ele enxerga a fantasia mitológica do filme como motor e potencializador de suas possibilidades narrativas, diferenciando-se de filmes que buscam um “realismo” ou cientificismo dentro de um universo tão lúdico como o dos super-heróis.
Nota do crítico:
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