A abertura do 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e o olhar incipiente de Marcelo Gomes para o mundo dos sonhos
O 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro teve sua abertura com homenagens emocionantes a obra e biografia de Vladimir Carvalho, dos mais importantes cineastas brasileiros contemporâneos, com influência sobre toda a história do cinema brasiliense; e à Zezé Motta, vencedora do Troféu Candango pelo Conjunto da Obra, e das maiores multiartistas da história recente do país. Ocorreu a inauguração da Sala Vladimir Carvalho, renomeando a famosa sala do Cine Brasília, por intermédio do Secretário de Estado de Cultura e Economia Criativa Claudio Abrantes, em meio a denúncias de corrupção no resultado do edital da Aldir Blanc no DF, divulgado em novembro. A presença de Abrantes no palco do festival é uma quebra de protocolo que, apesar de intencionada à homenagem ao cineasta falecido, serviu de palanque político para uma gestão desorganizada, na qual falta transparência e sobretudo comunicação com o público e os agentes culturais do DF.
Como encerramento da abertura, ocorreu a exibição do filme Criaturas da Mente (2024), de Marcelo Gomes (Viajo porque preciso, volto porque te amo; Estou me guardando pra quando o carnaval chegar). Apesar de tudo o que se desenrolou na abertura e que foi resumido muito brevemente acima, este texto se dedica apenas a investigar o filme de Gomes sob perspectiva crítica.
Criaturas da Mente é definido pelo próprio diretor como “um diálogo” entre sua arte cinematográfica e a ciência do biólogo Sidarta Ribeiro, que se dedica a estudar os sonhos e o inconsciente humano a partir da neurociência e da neurobiologia. Contudo, na prática, o filme é um desperdício de material. Não apenas Sidarta é um dos sujeitos de pesquisa documental do diretor, mas também a yalorixá Mãe Beth, o líder indígena Ailton Krenak e colegas do cientista. Todos são figuras carismáticas e de excelência no que fazem. Contudo, o diretor, ao contrário dos sujeitos de pesquisa que filma, não demonstra dominar da mesma forma seu ofício. Marcelo Gomes até é um personagem carismático, mas enquanto diretor, não é capaz de superar a esfera informativa e genérica de um documentário de televisão “bem filmado” (leia-se, comportado). O que cria um retrato frustrante de um grande filme que poderia ter sido. Afinal, talvez não haja tema mais propriamente cinematográfico: cinema é sonho e, como toda arte, feito de matéria onírica; é, como escreveu Buñuel: “o modo superior de expressar o mundo dos sonhos, das emoções e dos instintos (...) inventado para a expressão do subconsciente, visto que está tão profundamente enraizado na poesia.”
Entretanto, é justamente ao tentar “traduzir” o sonho que o filme mais fracassa. Se funciona enquanto documentário informativo pelo conhecimento e carisma de suas personagens, apesar de que formalmente isso o leva na direção contrária ao seu discurso de extrapolar os limites da racionalidade (criando um filme, na verdade, bastante limitado aos códigos de uma “razão” audiovisual incipiente), peca completamente enquanto tentativa de arte dos sonhos. A relação que Marcelo Gomes estabelece com o onírico é, primeiro, bastante ilustrativa e, depois, caricata: na verdade, o que é utilizado para construir as cenas de “sonho” são uma série de firulas cinematográficas quase infantis com truques primários de montagem e efeitos. O mais entristecedor é a incapacidade que o cineasta tem de trabalhar com o digital efetivamente, visto o potencial tacitamente onírico que realizadores como Michael Mann (Miami Vice) e Godard (Adeus à Linguagem) já provaram que este pode imprimir na tela. Infelizmente, o único resultado do uso do digital é a imagem lavada e genérica que ele produz quando não talhado com cuidado.
É lamentável assistir um filme que se perde tão rapidamente num tema que tantos cineastas de diferentes tradições exploram e demonstraram ao longo da história que pode ser resumido da seguinte forma: a representação do onírico no cinema é a materialização do erotismo dos sonhos na metafísica da cena. Isso significa, por um lado, que o sonho é constituído essencialmente de eros, e, portanto, demarcar sonho na película (ou no sensor) é demarcar erotismo; e erotismo se constrói na superfície sagrada e imediata das coisas e seres no ecrã. Isso significa, de forma prática, dizer que o que há de mais onírico no cinema são cineastas como Buñuel, Bresson, Hitchcock, Tourneur, Brakhage e, no Brasil, Glauber, Sganzerla e Bressane. Eis algo mais que Gomes poderia ter aprendido de um destes grandes cineastas: como filmar o sagrado, a espiritualidade e a dança Iorubá (que na prática, são uma coisa só). Glauber Rocha, em Barravento, ensina a importância, mais uma vez, da superfície imediata das coisas; porque o sagrado, sobretudo na espiritualidade que se manifesta no corpo que dança, canta e batuca, é uma espiritualidade do visível; como diz mãe Beth, do útero, do corpo que encontra Deus nos pés. Porém, em Criaturas da Mente, os momentos nos terreiros de candomblé são quase que inteiramente filmados do peito para cima, como todo o restante do filme construído em infindáveis talking heads, demonstrando mais uma vez como o cineasta é incapaz de superar (apesar da tentativa discursiva) a forma de pensar - e de representar - ocidental e racionalizante.
Mas de fato é justamente por suas inconsistências que Criaturas da Mente é um ótimo exemplo com o qual se deve ser aprendido: cineastas documentaristas precisam ter o compromisso de ao menos tentar estar à altura daqueles que documentam, quando é o caso. Por exemplo, o que torna um filme como Ne change rien (2009) tão interessante de ser assistido é, em boa parte, porque Pedro Costa está sempre correndo atrás da grandeza de Jeanne Balibar. Ao contrário do filme de Marcelo Gomes, ele não espera que o sujeito documentado, a cantora (e os demais músicos), segure o filme por si só, porque sabe que isso não é possível. Busca, então, constantemente construir dialeticamente com ela: o talento de Balibar emana na cena, e a cena se condensa em potência fílmica pelo olhar de Costa que nunca descansa em direção à excelência na mise-en-scène.
O cineasta deve ser um artista disposto a aperfeiçoar seu ofício tanto quanto o melhor cantor, pianista ou ator; até mesmo porque, para citar o mesmo autor cuja citação inicia Criaturas da Mente: “O trabalho de cineasta é o único no mundo no qual você pode ser absolutamente incompetente e ter uma carreira por mais de 30 anos sem ninguém nunca o descobrir” - disse Orson Welles.
Essa crítica faz parte da cobertura do 57º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:
Comments