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Crítica | Megalopolis (2024), de Francis Ford Coppola

Foto do escritor: Júlio OliveiraJúlio Oliveira

Coppola transforma sonhos em imagens e traz um dos filmes mais brilhantes do século.



O cinema é tido como a arte capaz de emular os sonhos. Muito por conta de sua profundidade sensorial (alcançamos som e imagem ritmados pela montagem), a sétima arte consegue atingir camadas muito específicas da experiência humana. É, ao mesmo tempo, uma representação da vida, mas também a vida em si como um próprio testemunho de sua existência. O filme é o produto final de um conjunto de ideias, mas também é matéria-prima de ideias daqueles que o assistem. Um bom exemplo disso é este texto, fruto de longas reflexões sobre Megalopolis, o mais recente lançamento do lendário diretor Francis Ford Coppola.


No filme, acompanhamos César (Adam Driver), um importante arquiteto da Autoridade de Design da cidade de Nova Roma. Com o desejo de revolucionar a forma que vivemos, ele enfrenta o conservador prefeito Cícero (Giancarlo Esposito), ao mesmo tempo em que começa a se envolver romanticamente com a filha de seu adversário, Julia (Nathalie Emmanuel). É interessante que, logo de cara, a obra apresenta esse aspecto fabular e exagerado, contando com atuações ultra-expressivas e uma direção maneirista que nos remete a outros trabalhos do diretor como Drácula de Bram Stoker (1992). Para além disso, o texto segue um padrão Shakespeariano, com longas declamações, monólogos e paixões intensas, sem qualquer tipo de pudor ou timidez.


Em certo sentido, é a materialização de uma expressividade da alma. Contando com uma narração (Laurence Fishburne) durante todo o filme, Coppola não esconde nada. Paradoxalmente, o mostrar não torna a experiência estética mais fácil ou óbvia, mas nos desafia sobre o que existe além. Isso pode ser percebido, por exemplo, na forma como o diretor se utiliza da computação gráfica misturada com imagens reais de metrópoles dos Estados Unidos da América. O real e o artificial se misturam a todo momento e a fotografia de Mihai Mălaimare Jr. amplia essa ideia de fábula ou sonho com um verdadeiro banho de ouro, nos apresentando uma ilusão vívida, mas ainda uma ilusão.


O mais interessante é que essa ideia de ilusão e sonho é expressa no artificial, na farsa e na mentira que é o cinema. De um lado, o concreto surge como solução para a cidade, a certeza de algo que já foi testado e aprovado, ainda que mantenha os vícios de uma sociedade que nunca se transforma, mas se mantém estática em um ciclo de crises que fortalece aqueles que já estão no topo. Do outro, a ilusão sem resultados sólidos (aqui trazidos na própria fluidez do digital, nas curvas e no brilho) vem como uma forma de esperança, ainda que carregada de riscos. E talvez “risco” seja a palavra que norteia todo o trabalho de Coppola aqui. Assim como César, ele se utiliza do controle do tempo (o cinema é, afinal, a arte de esculpir o tempo) e do espaço para criar um universo que, ainda que seja farsesco e ilusório, também conversa diretamente com o coração humano.


Assim como a mitologia nasce não para dar respostas, mas para suscitar questões da nossa própria existência e condição enquanto espécie, Megalopolis surge como esse filme mitológico em sua própria essência, cujos destinos dos personagens parecem bem desenhados, mas é no abraçar dessa ilusão que encontramos verdades profundas. O próprio questionamento sobre o espaço e suas delimitações aparece incorporado na forma. Aqui, falo mais como arquiteto (minha formação original) do que como crítico: qual a delimitação real entre o nosso espaço de morada e o de convívio em sociedade? O que é, de fato, um espaço vazio? O que preenche a cidade além das vidas humanas que ali habitam? A que servem as ruas, avenidas e prédios de nossas cidades? Qual poder - histórico, material, econômico, político - controla nossas vidas através da soberania sobre o espaço e o tempo (afinal, não somos nós que definimos quantos dias da semana trabalhamos)?


É compreensível que alguns se sintam sobrecarregados por tantas questões que Megalopolis traz não só em seu texto, mas em sua própria forma. O plano está sempre carregado de luz e diferentes pontos focais, de forma que precisamos mover nossos olhos por toda a tela do cinema para enxergarmos a completude desse universo. Há também uma série de personagens, tramas e conspirações que surgem a todo momento, com conexões que nascem quando menos esperamos. E, ainda assim, temos uma história simples, humana e cheia de coração; uma história de amor.


É nessa coragem de encarar o simples, mas não se render ao simplismo, que Coppola constroi uma verdadeira obra-prima. O filme, aos poucos, torna-se a própria ideia de sonho e criação encarnada. A cidade de concreto torna-se cada vez mais artificial e mágica, os planos dão lugar à tela dividida em três partes e começamos a enxergar o fluxo de consciência de César, nessa megalomania que é assustadora e, ao mesmo tempo, tão bela. Imagens estáticas, sobreposições e o questionar dos próprios limites do plano são personificados em uma sequência de imagens que me remeteu ao fantástico The End of Evangelion (1997), de Hideaki Anno.


O mais brilhante é que, em meio a toda essa ousadia e grandiosidade, o que mais marca é o coração e a inocência. O plano final - uma criança que segue o fluxo do tempo - é uma das imagens mais belas que já vi na minha vida. Em meio ao luxo e aos vícios de uma sociedade doente, a vida segue e, por mais clichê que tal mensagem possa parecer, é dos clichês e dos sonhos que precisamos. É no abraço da ilusão e daquilo que aparenta ser falso que encontramos uma espécie de verdade que faz a vida continuar dourada, esquisita e cheia de surpresas.


Precisamos respirar além do cinismo e da tragédia (ou do tal do realismo capitalista, a ideia de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do sistema vigente) e, nem que seja por um instante, abraçarmos o sonho, algo que vai além de nós mesmos e, paradoxalmente, retorna à própria alma humana. Sinto que Megalopolis faz isso e, por muitos e muitos anos, ainda teremos muito a falar sobre ele.




 

Nota do crítico:

 

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