Num verdadeiro filme de gênero, Michael Mohan dá mais alguns passos (e tropeços) em sua jornada hitchcockiana.
Saí eufórico e meio assombrado da sessão de Imaculada (2024, Michael Mohan), certo de que não se trata de um grande filme, mas incerto sobre o que o reduz. Depois de alguma reflexão, optei por criticá-lo a partir de três ideias que perduram no meu pensamento desde a sessão.
A primeira ideia vem germinando desde que vi o filme anterior do cineasta, também estrelado por Sydney Sweeney, Observadores (2021, Michael Mohan). Em resumo, acho que Michael Mohan é um hitchcockiano bom e convicto. Ele não é um grande hitchcockiano, em parte porque ainda nem é um grande cineasta.
Mohan entende que o drama cinematográfico parte de um rompimento do cotidiano que, por mais involuntário que seja, se relaciona com um desejo ambíguo do protagonista, um desejo tanto pelo perigo quanto pela segurança. É o desejo que move incansavelmente o fotógrafo de Janela Indiscreta (1954, Alfred Hitchcock) e o publicitário de Intriga Internacional (1959, Alfred Hitchcock). É o compartilhamento e a busca por apaziguar esse desejo que, em Janela Indiscreta, torna Grace Kelly uma mulher completa para James Stewart e, em Intriga Internacional, torna Cary Grant um homem completo para Eva Marie Saint. Em Observadores (que é um filme-paráfrase de vários suspenses de Hitchcock), a forma mais sensual desse desejo move Sydney Sweeney. Em Imaculada, esse desejo assume uma forma mais peculiar: a vocação. Nossa protagonista, a freira Cecilia, quer se sentir parte do convento, achar conforto em seu novo ambiente, e acredita estar ali para cumprir algo muito importante, mas que a desconforta desde o dia em que foi vocacionada, aos doze anos de idade, numa experiência de quase morte.
Como um suspense hitchcockiano, o filme todo opera essa tensão entre repulsivo e atrativo por meio da subjetivação formal. Sweeney está na maioria dos planos e em quase todas as cenas. Muitos dos planos que não a mostram são planos subjetivos ou pseudo-subjetivos, em que a posição e o movimento da câmera emulam a visão de sua personagem.
Fiel ao modus operandi de Hitchcock, Mohan insere alguns planos que, oferecendo uma visão objetiva da cena, parecem quebrar essa dinâmica subjetivante, mas, na verdade, apenas intensificam nossa conexão com a protagonista, dando limites físicos a ela. Nesse tipo de plano, vemos a forma exterior de uma situação interior, e seu encaixe suave no fluxo de imagens subjetivas enriquece o jogo psicológico proposto pelo diretor. Um exemplo claro dessa operação está na cena da cerimônia de recebimento das novas freiras. A cena começa com um dolly in subjetivo (imagem 1), corta para um contra-plano da protagonista em dolly out (imagem 2) e, então, corta para um desses planos objetivos: um travelling que a acompanha lateralmente, a muita distância, através de várias outras freiras, que a encaram (imagem 3). Quando a câmera passa por uma pilastra, Mohan justifica o corte para um plano mais fechado dessa mesma perspectiva (imagem 4), que serve para preparar nosso retorno à decupagem subjetiva que se concretiza num over the shoulder da protagonista (imagem 5). Esta imagem já não é tão obviamente subjetiva quanto a primeira, mas, graças à dinâmica em que se insere, é profundamente subjetiva e serve à necessidade cênica de um breve diálogo entre a protagonista e o padre Tedeschi, interpretado por Álvaro Morte (imagem 6).
Imagem 1
Imagem 2
Imagem 3
Imagem 4
Imagem 5
Imagem 6
Em tudo isso, é evidente que Mohan aprendeu com Hitchcock a conjugar forma e conteúdo, porque suas cenas transmitem precisamente o que ele filma e nada de essencial escapa de seu controle dramático e estético. O que nos leva à minha segunda ideia sobre Imaculada: trata-se, realmente, de um filme de gênero. Apesar das coisas que anunciam aos quatro ventos desde antes do filme estrear, Imaculada não é uma crítica social ou uma lição de moral; acredite se quiser, é um filme de terror. Ele funciona como filme de terror, assusta como um, diverte como um e elabora seus temas como um, mas também falha como um.
Da mesma maneira que Hitchcock fez da câmera uma caneta e escreveu profundamente sobre os mais diversos temas humanos, o cinema de gênero oferece seus elementos como matéria-prima da expressão artística. Um grande cineasta de gênero trata do que bem entende através de elementos genéricos, que se caracterizam superficialmente. Por isso, o grande cinema de gênero não serve de máscara ou pretexto para qualquer discurso, porque tudo o que ele “fala” é “falado” por si, por seus elementos, pelo que torna seus filmes parte de um determinado gênero.
No cinema de ação, George Miller é um dos mestres porque as dinâmicas humanas de que trata se provam pela força da ação, não pelo drama entre uma set piece e outra. Transitando entre a ação e a comédia, Buster Keaton é o maior dos mestres porque nunca precisou pausar seu fluxo de gags e set pieces para nos mostrar uma ou duas cenas dramáticas que expliquem sua visão de mundo: seus melhores filmes são filmes de gênero do primeiro ao último plano (coisa que Chaplin não sabia fazer, por melhor comediante que fosse).
Filmes assim são cada vez mais raros. Quase todas as vezes que vejo um lançamento “de gênero”, me lembro de um professor que proclamou em aula que todos os filmes de hoje são dramas. Parece verdade, porque o cinema de gênero anda cheio de dramas disfarçados. Por essa razão, filmes como Imaculada são os que mais me satisfazem ultimamente, ainda que imperfeitos, porque até seus erros se dão a partir dos elementos de gênero.
Em termos gerais, Hitchcock foi o cineasta de gênero por excelência, porque não apenas foi capaz de usar os elementos de gênero expressivamente; ele obteve êxito em converter os elementos cotidianos em elementos de gênero, conferindo-lhes a mais alta honra cinematográfica. Esse aspecto crucial do cinema de Hitchcock ressoa no que disse Godard em História(s) do Cinema (1989-99, Jean-Luc Godard):
Esquecemos por que Joan Fontaine se inclina à beira da falésia, o que Joel McCrea ia fazer na Holanda, a que propósito Montgomery Clift guarda eterno silêncio e por que razão Janet Leigh parou no Bates Motel. [...] Mas lembramo-nos de uma mala de mão, de um bonde no deserto, de um copo de leite, das velas de um moinho, de uma escova de cabelo, de uma fila de garrafas, de um par de óculos, de uma partitura de música, de um molho de chaves. Porque, com eles e através deles, Alfred Hitchcock triunfou onde fracassaram Alexandre, Júlio César, Hitler, Napoleão: ele tomou o controle do universo. [...] As formas nos dizem o que há no fundo das coisas. O que é a arte senão aquilo através do qual as formas se tornam estilo?
Michael Mohan é um bom hitchcockiano, mas se atrapalha na organização de tantas imagens e tantos sentidos latentes. Tudo o que é essencial ao filme está em sua organização formal, mas muito do que ele tenciona escapa de seu controle. Ele nem percebe para onde está apontando seu filme com determinadas cenas. O filme funciona enquanto terror num nível ainda primitivo, em que os elementos falam por si, mas não se articulam entre si, o que nos leva à minha terceira e última ideia sobre ele: Mohan bagunça as diferentes possibilidades de sentido em cena, e isso é o que mais reduz Imaculada de seu potencial.
Em determinada cena, Sydney Sweeney está parada à janela, observando uma misteriosa freira de máscara vermelha, a distância. De repente, um corvo atinge a janela. Essa é uma cena simples de puro truque, típica do gênero. A freira de máscara vermelha é um truque meio vazio, usado desde o início do filme para nos deixar tensos e curiosos; o jumpscare do corvo é mais vazio ainda. Esses truques denotam uma cena patentemente excessiva com poucas possibilidades latentes, mas os maiores problemas do filme não são tão evidentes.
Quanto mais penso em Imaculada, penso na forma como Mohan constrói a relação entre a irmã Cecilia e o padre Tedeschi. Lembro dos closes nos olhos e nos lábios de Cecilia, contendo um discreto sorriso enquanto observa o padre recitar seus votos de castidade. Lembro do diálogo regado a vinho, lembro da cena em que ele se aproxima da protagonista, na contra-luz, e sussurra que a gravidez dela é boa, como se ele soubesse da tensão sexual entre os dois e quisesse assumir um papel paternalista, determinando as ações de Cecilia com suavidade, como o marido mau que se faz de carinhoso para manipular a esposa.
Apoiando-se em ferramentas essencialmente cinematográficas, Mohan nos transmite a certeza de uma tensão que o roteiro deixa em aberto. Essa riqueza de sentido que se move nos elementos superficiais é parte do que me faz admirar Mohan. Mas aí eu me lembro que ela está em contato direto com outras riquezas de sentido que a contradizem, e essa contradição não gera uma complexidade admirável, não existe uma dialética que a justifique; essa bagunça é parte de um acochambrado. Vide a primeira cena da protagonista, na alfândega, em que um policial a julga muito nova para ser freira, diz que deve ser uma decisão difícil. Ela se constrange, mas diz que não vê como uma decisão. Outro policial lamenta (em italiano, para que a protagonista não entenda) o desperdício que é uma freira tão bonita. É uma cena tensa de se assistir. Poucos minutos depois, Mohan filma um close da barriga de Sydney Sweeney se cobrindo com a veste religiosa, como quem realmente pensa: “que desperdício”.
Diante da tensão sexual entre o padre e a freira, entendemos que a opressão vem junto do desperdício e, no decorrer do filme, tudo isso se relaciona às noções de destino, Deus, Igreja e aos papéis de gênero. Mas o acochambramento é tal que nenhuma dessas ideias passam por uma desconstrução ou por uma aceitação, mesmo que crítica. Na verdade, o filme se apoia nessas mesmas ideias para objetar aos antagonistas. Você pode assistí-lo do ínicio ao fim e concluir que o catolicismo nem foi realmente problematizado, até porque os eventos retratados se passam numa seita secreta herética que decide tomar as rédeas da História e fazer precisamente o que o cristianismo sempre rejeitou, repetir o pecado original: brincar de Deus (como a protagonista mesmo verbaliza no último ato). Daí me lembro da riqueza de sentidos que mais me encantou durante o filme e que mais lhe determina, porque envolve a principal questão de seu enredo: de onde veio essa gravidez? Algo assim poderia estar em Dostoiévski se ele fosse um autor pulp ou em Hitchcock se ele dirigisse ficções científicas. Talvez eles chegassem a uma perfeita harmonia dos sentidos tencionados, como em Crime e Castigo (1866, Fiódor Dostoiévski) e Festim Diabólico (1948, Alfred Hitchcock), suas obras que mais se aproximam tematicamente, levantando questões e oferecendo respostas no mesmo campo de Imaculada: o da possível autoridade humana sobre si, sobre a ética e sobre o mundo circundante. Em Michael Mohan, temos um engodo pseudo-progressista e pseudo-cristão que caminha mais ou menos com as próprias pernas.
Dando uns passos para trás e observando a obra como um todo, mantenho minha admiração por Mohan e até acho que vou rever Imaculada qualquer dia. Ele consegue carregar a tensão e as nossas expectativas apelando pouco pras set pieces, que são muito boas, mas não servem de muleta para ele. Insisto que Mohan realmente entende o gênero e entende bem o legado de Hitchcock, mas parece que ele não conseguiu entender seus próprios impulsos e organizá-los em prol da arte. Mesmo assim, acho que ele entende a arte.
Nota do crítico:
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