Assumindo o lado mais vil e sedutor da fotografia, Guerra Civil foge de qualquer moralismo e se revela um dos lançamentos mais interessantes do ano.
François Truffaut teria dito que “é impossível fazer um filme anti-guerra”. Essa impossibilidade se daria pelo fato de que o ato de filmar automaticamente criaria um viés de espetáculo e admiração. Portanto, qualquer representação da guerra não poderia ser negativa o bastante a ponto de ser “anti”. Ainda assim, não faltam filmes que pelo menos tentam fazer oposição à ideia de guerra de variadas formas: temos a ironia pessimista de Apocalypse Now (1979, Francis Ford Coppola), a brutalidade traumatizante de Vá e Veja (1985, Elem Klimov), o drama trágico de Nada de Novo no Front (2022, Edward Berger), entre tantos outros. O fato é que, gostando ou não, essas são obras que contam com uma aprovação de parte da cinefilia no que tange a “cartilha anti-guerra”.
Guerra Civil (2024, Alex Garland) teria os ingredientes perfeitos para seguir tal cartilha: temática densa, cenário politicamente complexo, elenco engajado em pautas sociais importantes e o selo A24. Entretanto, Garland opta pelo oposto: ao invés de se posicionar acima do objeto de estudo e julgá-lo com a câmera, ele o incorpora, sujando as mãos e fazendo parte de toda forma de imoralidade e crueldade apresentada sem qualquer receio ou pesar de consciência. Fugindo de cartilhas de bom gosto, ele vai até os limites na hora de extrair uma gratificação visual de cada uma das cenas apresentadas, num processo que emula seus personagens principais. Dessa forma, Guerra Civil se apresenta como um legítimo filme de guerra.
Seguindo manual de boas práticas do cinema do bem, isso pode ser visto como sádico e até mesmo vil. Entretanto, eu enxergo isso como um ato de honestidade, de forma que Garland não se coloca em posição de julgamento, mas se posiciona junto aos seus personagens insanos e compra os seus discursos, criando assim um exercício de observação hipnotizante, em que o diretor não se interessa em reafirmar valores morais, mas em causar tentação, desafiar, seduzir. Esse posicionamento fica muito claro desde a primeira cena, em que há trechos de conflitos armados intercalados com o ensaio do presidente, demonstrando uma diferença abismal na representação dos dois tipos de imagem, uma manipulação que se revela de forma muito clara.
Essa lógica é seguida à risca quando encontramos o núcleo dos protagonistas, em um filme que se utiliza bastante de uma baixa profundidade de campo (quando o fundo fica desfocado) e da câmera na mão para nos posicionar dentro das situações de perigo e de pouca estabilidade. Isso cria uma sensação de imersão e identificação com os personagens, por mais malucos e sádicos que eles sejam. Nesse processo de identificação, Garland nega qualquer informação mais aprofundada sobre a guerra que os cerca, interessando apenas o imediatismo que as situações de risco demandam, criando uma relação cíclica de perigo e fuga que se retroalimenta, como que pedindo sempre por mais. Nesse sentido, Guerra Civil também se assume como um filme de ação.
Talvez o único alento de moralidade anti-guerra do filme esteja presente na mixagem de som, especificamente na forma que tiros e explosões são representados. Garland usa o som como agressão, numa mixagem tão desproporcional (os tiros e outros atos de violência contam com um volume muito mais alto que qualquer outro som no filme) que pode chegar a incomodar. Ainda que sirva como um elemento importante do cinema de guerra e de ação, aqui há um desequilíbrio proposital que traz desconforto e uma fadiga crescente, um sonoro relembrar que há coisas melhores e mais agradáveis que a guerra. Interessante que isso surge não pelo texto ou através de decisões narrativas mais óbvias, mas de maneira bastante integrada à linguagem.
Pra mim, fica claro que Guerra Civil não é um filme “neutro”. Ainda que ele rejeite revelar exatamente as razões do conflito armado, ele consegue englobar todas essas ideias em cada escolha formal. Garland não tem medo de sujar as mãos, admitindo como a representação da violência pode ser vibrante e provocadora de fortes emoções, nos entregando a alma de cada um de seus personagens através da forma. Seja na emoção desenfreada de Joel (Wagner Moura), na dessensibilização de Lee (Kirsten Dunst) ou na jornada espiritual de Jessie (Cailee Spaney), a obra revela uma honestidade ímpar.
Guerra Civil entende a fotografia como arma e não se rende à tentação de se distanciar; pelo contrário, se aproxima ao máximo daquilo que observa, em um processo de integração admirável, rejeitando qualquer forma de moralismo barato que poderia transformá-lo em mais um filme supostamente “crítico” e “consciente”. Na verdade, é no abraçar do lado mais perverso da fotografia que a obra encontra sua força e identidade, num movimento que pode ser visto como “errado” para tantos, mas que me parece corajoso e artisticamente relevante.
Guerra Civil está em cartaz nos cinemas de todo o Brasil.
Nota do crítico:
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