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Crítica | Benção Mortal (1981), de Wes Craven

Craven dramatiza seus fantasmas com imaginação, mas o apego às suas ideias esmaga a arte no processo



Para o bem e para o mal, somos todos filhos do nosso meio. Essa constatação, por mais banal que pareça, costuma nos empurrar para um truque psicológico bastante conveniente: terceirizar nossos problemas para uma entidade invisível, genérica e sempre à mão chamada “sociedade”. Ela é ótima para levar a culpa porque, afinal, não tem rosto nem voz. Serve tanto para acusarmos os poderosos que não conhecemos quanto os medíocres com quem dividimos o ônibus. E, uma vez eleito esse bode expiatório, estamos liberados para nos congratular pelas virtudes do nosso grupo (ou de nós mesmos), enquanto deixamos os vícios no colo da tal “sociedade”. Esse tipo de raciocínio está por trás de muita gente bem-intencionada: dos ascetas mais piedosos aos ativistas mais engajados. Ora serve para justificar o afastamento do mundo, ora para justificar a tentativa de transformá-lo à nossa imagem e semelhança — sempre com a premissa de que as próximas gerações serão salvas do contágio se crescerem sob a influência correta.


Foi mais ou menos nessa mentalidade que cresceu Wes Craven, numa família evangélica que via a sociedade como uma ameaça permanente à pureza das crianças. Mas era também uma típica família de classe média americana, daquelas que trocam facilmente as histórias da Bíblia pelas animações da Disney (os únicos filmes que Craven viu até a idade adulta) e a boa teologia por artigos da Reader’s Digest (revista que sua mãe lia com devoção, enquanto achava esquisitíssimo o gosto do filho pelos livros). Toda a educação de Craven se deu em escolas cristãs brancas, ainda sob a vigência das leis de segregação racial. Ele nunca se encaixou bem e chegou a ser punido após publicar, numa revista estudantil, uma matéria sobre um casal interracial — os crentes daquela escola provavelmente não viam o reverendo Martin Luther King como um irmão em Cristo, mas como um dos muitos “subversivos” da sociedade.


Demorou bastante até que Craven explodisse para fora desse ambiente sectário — e, quando isso ocorreu, a separação foi radical, como costuma ser nesses casos. No fim dos anos 1960, ele abandonou sua promissora carreira acadêmica e passou a desempenhar várias funções em produções pornográficas, incluindo no célebre filme que levou o sexo explícito ao mainstream: Garganta Profunda (1972, Gerard Damiano). Geralmente sob pseudônimos, como Abe Snake, ele seguiu nesse meio mesmo após o sucesso estrondoso de seu primeiro filme de terror, Aniversário Macabro (1972), que gerou tanta polêmica que Craven evitou retornar ao gênero por cinco anos, até finalmente se render e se consagrar com um segundo sucesso: Quadrilha de Sádicos (1977). Oficialmente, estes foram seus dois primeiros longas-metragens para o cinema; o terceiro foi Benção Mortal (1981).


Sua filmografia começa em rebelião e termina em paz, porque Craven se torna cada vez mais consciente de sua condição fraturada e, aos poucos, vai reconciliando suas partes por meio dos filmes. Ele era um rebelde entre os carolas e, após alguns anos, se tornou um menino bem-comportado num gênero profano. Até o lançamento de O Novo Pesadelo - O Retorno de Freddy Krueger (1994), quando Craven finalmente selaria paz com seu passado, Benção Mortal era sua afirmação mais convicta de que o terror não precisa servir apenas como expressão do desamparo outrora contido pela religião; também pode servir à reconciliação. O aperto de mãos entre tribos com que ele havia encerrado Quadrilha de Sádicos já afirma essa possibilidade, mas apenas através do martírio de uma das partes, enquanto Benção Mortal lida diretamente com o acordo entre partes que não pretendem ceder suas naturezas. Ele ainda não havia feito um filme inteiro e tão direto sobre o choque entre convenções sociais e nem havia trabalhado com tantos elementos autobiográficos quanto neste filme.


Em Benção Mortal, somos apresentados aos hititas — uma seita cristã fictícia que se parece muito com os amish, mas que seria ainda mais radical. O nome “hitita” vem de um antigo povo politeísta do Oriente, mas Craven esvazia a conotação original, escolhendo-o apenas porque soa esotérico o bastante aos ouvidos do público.


Os conflitos da narrativa começam quando Jim — um jovem que abandonou a comunidade hitita e se casou com Martha, uma mulher de fora da seita — é encontrado morto em sua própria fazenda, que fica perto da comunidade. Num primeiro momento, ninguém supõe que o rapaz foi assassinado, porque parece ter sido apenas um acidente. Os hititas, no entanto, culpam Martha, porque ela teria corrompido Jim e trazido maldição sobre sua vida. Mas nós sabemos que ele foi assassinado, porque Craven nos deu uma visão privilegiada da cena numa câmera subjetiva, típica de slashers: alguém cujo rosto não vemos estava à espreita e provocou deliberadamente o suposto acidente.


Os hititas xingam Martha e as demais vizinhas da fazenda de “íncubo”, que inicialmente parece só mais uma palavra tirada do seu sentido original — já que o íncubo folclórico é um demônio masculino que faz sexo com mulheres durante o sono, e sua contraparte feminina é a súcubo. Se a intenção deles é estigmatizar o papel típico das mulheres no afastamento dos homens de suas famílias (fenômeno natural para qualquer um de fora da seita, muito relacionado ao amadurecimento psicológico), o xingamento adequado seria súcubo, não íncubo.


Todavia, Lana, uma das amigas de Martha, tem sonhos recorrentes com uma figura masculina muito parecida com o íncubo folclórico. Ela relata um desses pesadelos, mas não menciona o nome do demônio porque nem ela sabe do que se trata, e Craven tampouco explicita a conexão — sendo este “não dito” um de seus maiores trunfos. Mais tarde, quando outro assassinato ocorre, os hititas dizem já saber quem é o culpado: o íncubo!


Talvez a cena mais marcante de Benção Mortal seja justamente um desses pesadelos de Lana. É uma cena simples, mas de atmosfera macabra e com uma noção forte de mal inexorável. Craven lança mão de planos que se fecham em poucos objetos, posicionados para fazer uso da tela inteira, num espaço que se abstrai pela decupagem e pela fotografia escura. Tudo que importa ali é: uma cama, uma moça, as mãos do demônio, que tocam seu rosto enquanto ele sussurra seu nome, e uma aranha que desce do teto e entra em sua boca escancarada (aberta por vontade própria, mas sob ordens do íncubo). São elementos fortes e bem encenados, mas seu efeito só se concretiza porque a cena se nutre de várias sugestões espalhadas ao longo do filme: as menções ao íncubo pelos hititas, a angústia crescente de Lana, as aranhas que ela vê em toda parte e, claro, o mistério do assassinato. Aliás, essa cena só funciona mesmo (e só a compreendemos como representação do íncubo, independentemente de termos o conhecimento folclórico) justamente porque o mistério ronda nossas mentes, ainda que interesse pouco às personagens.


Quando assistimos à cena, ela parece isolada do fio narrativo principal, que se foca mais nos momentos de repressão e tentação entre os hititas do que na possibilidade do íncubo existir literalmente. Ou seja, porque o filme não nos entrega a conexão entre seus elementos isolados, é difícil o espectador atento não se perguntar sobre o mistério que essa cena oculta. Somos impelidos a juntar os pontos, a tentar ligá-la aos assassinatos que ainda estão em aberto: O assassino é realmente sobrenatural (o íncubo, como querem os hititas)? Ou humano, mas movido por forças ocultas? Talvez a pista esteja na função alegórica de tal criatura, porque o ato de abrir a boca para a aranha evidencia o caráter coercitivo do mal e, desde o início, o filme está tratando do caráter coercitivo da vida em comunidade. Talvez seja um desses males comunitários o que move o assassino. Certamente, eram males assim que assombravam Craven desde a infância.


A personagem em que o mal coercitivo melhor se dramatiza é John, o jovem irmão do falecido Jim. Ele guarda para si um forte desejo de conhecer o mundo e viver a liberdade que seu irmão obteve às custas da rejeição familiar, mas ele está completamente envolvido na vida comunitária e sempre obedece ao seu pai de bom grado — pelo menos, até a morte do irmão. Ele é muito ingênuo e sua aparência lembra a de um anjinho, mas há uma lascívia latente. John é a própria imagem da seita e, por isso mesmo, ele sofre as dores da coerção mais intensamente.


Essa coerção assola todas as personagens — hititas ou não — ao longo do filme. O ápice está no último ato, quando se revela a identidade do assassino e o filme nos permite reinterpretar o uso do termo “íncubo” por parte dos hititas. Embora o desfecho possa ser polêmico hoje, ele se liga ao centro temático do filme, porque mostra as consequências de uma imposição familiar baseada numa visão comunitária exclusivista.


Voltemos à cena do pesadelo de Lana: ela é tão cativante visualmente que foi usada no cartaz de lançamento do filme — mesmo não sendo central para a narrativa, nem muito representativa de sua estética. Quando vi o filme pela primeira vez, gostei da cena, mas achei que ela destoava demais do todo; parecia enfiada ali apenas para cumprir tabela com os fãs do gênero e com os produtores, que esperam certa quantidade de imagens apelativas. Eu não estava errado ao ter essa impressão inicial: é assim que Hollywood funciona e o terror sempre foi refém da lógica publicitária. E, muito embora eu tenha argumentado em favor da conexão simbólica desta cena com o todo, ela nunca se integra bem à experiência sensorial da obra. Não é como num filme de David Lynch ou mesmo nos melhores filmes de Craven, em que uma esquisitice pode parecer deslocada, mas o restante da obra a acolhe como parte do mesmo universo.


Acontece que, no chamado “cinema de gênero”, há o costume quase inescapável de estruturar as narrativas pela alternância entre cenas típicas do gênero, que motivam o público a ver o filme, e cenas dramáticas, que dão sentido às cenas de gênero. São quase duas linhas narrativas independentes, que se cruzam aqui e ali. Deste modo, os melhores filmes de gênero costumam se provar pela boa realização dessa alternância.


Ainda que essa aparente falta de unidade não seja necessariamente um vício, é algo que se vicia facilmente, porque muitos cineastas prezam tanto por um desses tipos de cena que acabam fazendo do outro um fardo. É o que acontece, por exemplo, nos filmes do palhaço Art, especialmente Terrifier 2 (2022, Damien Leone), em que precisamos tolerar duas horas de cenas dramáticas horríveis para desfrutarmos de uns quinze minutos de excelentes cenas de violência. No caso de Benção Mortal, os dois tipos de cena têm suas muitas graças, mas ambos também representam fardos pesadíssimos sobre o público, que precisa travar batalhas contra o tédio.


Seu problema não é que as ideias estejam subdesenvolvidas. Como expus anteriormente, este filme tem todo um esqueleto simbólico que perpassa suas diferentes imagens e diz respeito ao íntimo do cineasta. Mas a organização dessas ideias numa obra de arte transcende a mera cognição, pois concerne ao jogo entre mente e corpo, que é a atitude estética genuína. Também não diz respeito apenas à estrutura geral do filme, porque não o experienciamos de uma vez, mas cena a cena.


Nas cenas de Benção Mortal em que as personagens se envolvem mais intensamente com seus conflitos dramáticos, suas vidas interiores se particularizam em situações e se tornam verdadeiras aos olhos do público, mesmo que por pouco tempo. Por outro lado, nas cenas em que as personagens apenas conversam entre si ou agem de modo menos efusivo, Craven só nos oferece comunicações burocráticas de sentimentos que se fazem necessários para os conflitos maiores. O cineasta sabe que o público só pode abstrair um tema dos momentos mais grandiosos se todos esses elementos já estiverem espalhados pelo resto do filme, então ele faz da maioria das cenas uma preparação enfadonha para os raros pontos altos. Embora o cineasta favorito de Craven fosse Bergman, ele nunca demonstrou 10% do cuidado que o sueco tinha em relação ao drama das conversas privadas. Em Bergman, essas cenas têm um enorme valor imanente, que alcança a transcendência e se espalha por todo o filme; nesses filmes iniciais de Craven, essas cenas são porcamente restritas à funcionalidade.


Por exemplo, há uma sequência em que Vicky (outra das amigas da viúva) sai para correr de manhã e se depara com várias pequenas situações no seu percurso. Os enquadramentos, a montagem elíptica e a música enjoativa parecem apenas comunicar grosseiramente a sensação de bem-estar da personagem. Aqui, não vemos mais do que uma caricatura de sentimento ser tratada como o sentimento em si. Além disso, a personalidade de Vicky é tão nula e se particulariza tão pouco nessas situações, que nosso elo dramático se perde em seu percurso. As únicas coisas que a mise-en-scéne de Craven parece realçar são a ambientação rural e a música enfadonha. Quando um diálogo ou qualquer interação maior acontece, ele fragmenta tudo em primeiros planos inexpressivos desses atores que apenas fingem ter uma vida interior, para que essas sugestões talvez rendam algo nas cenas mais efusivas. Podemos depreender significados interessantes, por exemplo, sobre os hititas pelos quais ela passa nessa corrida, mas isso é nosso esforço contrário ao esforço do filme, que se empenha em preencher nosso tempo com imagens e sons emocionalmente alheios a tudo o que ainda pode nos manter interessados diante da tela.


Em determinado ponto dessa corrida, Vicky conhece John e eles se interessam um pelo outro, mas o que eles conversam serve apenas para comunicar que eles estão desenvolvendo certo afeto: nada do que eles falam tem algum valor para o resto do filme ou alguma beleza para a própria cena, só cumprem uma função dramática pré-determinada. No caso desta cena e de outras interações envolvendo John (que possui o maior arco dramático do filme, mas é quase sempre enfadonho de se assistir), o terreno está sendo plantado para ele ser expulso da comunidade hitita por seu líder, Isaiah, no final do segundo ato.


Diga-se de passagem, todas as cenas dramáticas efusivas, que fazem o enfado das cenas rasas valerem a pena, envolvem Isaiah. No papel, ele poderia ser a personagem mais rasa do filme, por ser o esteriótipo do fanático religioso, mas se torna a melhor de todas na interpretação do grande Ernest Borgnine. Em seu comportamento passivo-agressivo, vemos o homem controlador que mantém todos em rédea curta, mas também vislumbramos o homem gentil que convence a todos e a si próprio de que esse estilo de vida é o melhor possível. Num pequeno gesto ou mudança de tom, ou numa permanência de tom quando os demais atores variam sem discernimento, Borgnine nos faz entender o que é a vida interior deste homem cujas ações externas são razoavelmente monótonas. Numa cena em que ele usa o púlpito para castigar uma criança diante de toda a congregação, vemos um dos melhores exercícios de decupagem e ritmo da carreira de Craven. É a segunda cena mais memorável do filme.


De igual modo, as cenas de assassinato, que costumam ser as mais divertidas desses slashers oitentistas, são as cenas de terror mais fracas de Benção Mortal — deixando a graça quase toda em cenas isoladas, como a do pesadelo. Acho que o exemplo mais emblemático é a cena em que um carro é incendiado com pessoas dentro. Quando pensamos no roteiro e na esquematização física, parece uma cena bem divertida, em que a ação imediata importa mais do que tudo. Uma abordagem muito simples e objetiva da cena teria dado conta do recado, mas Craven a fragmenta em muitos planos (a maioria, close) e os monta de uma forma em que a dinâmica espacial se desfaz na mente do espectador: fazemos um esforço mental grande demais para apreciar aquilo como realidade física, o que mata a imediaticidade requerida. É um erro flagrante demais, que o Craven de filmes posteriores não cometeria, mas aqui parece nem notar que está cometendo.


O que torna esse filme incoerente e cansativo é essa interdependência truncada entre umas poucas cenas impactantes, umas muitas cenas frouxas e uma organização de ideias e símbolos que almejam a independência de toda a expressão artística (tanto eles querem ser independentes que culminam e se autodestroem, pela caricatura acidental, naquela última cena — que mais parece um apêndice do que um desfecho mesmo). Se Craven tivesse lidado de forma mais lúdica com cada cena, estando disposto a jogar livremente com ideias e efetividades, não apenas impor umas sobre outras, ele poderia ter resolvido grandes problemas. Quem sabe, ele poderia ter feito outros atores, além de Ernest Borgnine, doarem vitalidade a essas personagens? Em vez disso, o filme se desfaz em muitas camadas que não se integram e em várias cenas chatas que apenas vislumbram bom drama de longe, por causa de suas boas ideias. Acaba sendo uma imagem ímpar da personalidade de seu autor, mas uma triste vítima da imaturidade artística.



Nota do crítico:


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