O experiente cineasta cria um filme irreverente no olhar e no tratamento ao público, com material de festival, sem deixar de divertir
Existem alguns filmes que conseguem capturar a atenção do espectador mais exigente, ao mesmo tempo que geram situações de entretenimento e recheiam suas obras de referências culturais de fácil identificação em qualquer parte do mundo. Jim Jarmusch é dez anos mais velho que Quentin Tarantino, mas ambos trouxeram ao cinema americano, de maneiras diferentes, uma aura cool, revisitando e tornando acessível ídolos e imagens do passado, ou símbolos de consumo. No caso de Tarantino, ele transformou um diálogo entre dois mafiosos se locomovendo a um edifício onde fariam uma negociação em uma troca de pensamentos filosóficos sobre o sistema métrico do McDonald’s em Pulp Fiction - Tempos de Violência. Jarmusch, em Trem Mistério, de 1989, já foi atrás de uma identidade, um mito que contorna as bordas de um filme antológico.
Aqui, cada um dos três capítulos traduz e torna o espírito de Elvis Presley presente na vida de um grupo de pessoas, que se hospedam em um hotel de segunda categoria, dispostas individualmente, em dupla ou até em trio. A única coincidência que paira a cada segundo da antologia é que, em algum momento, todos ouvirão o mesmo barulho, mas o clique que transforma o instante em um encontro definido nunca ocorre. Há algo de fantasmagórico nesta perspectiva: você esteve lá, mas o lugar só serviu de fachada para uma fuga. Como ser visto sem ser notado? É mais ou menos por aí o raciocínio de Jarmusch. Quem sempre observa, no entanto, são os ícones da época em que ter uma guitarra e um pouco de atitude era a coisa mais legal do mundo. As indicações estão sempre lá: é um quadro de Elvis em um quarto, a sacada genial de colocar Screamin’ Jay Hawkins como atendente, citações a Jerry Lee Lewis, visita guiada a um estúdio onde essas lendas se cruzaram.
Ao contrário do que seria a indicação mais óbvia, aproximar o americano de seu próprio universo, o diretor traduz o que é intraduzível na primeira parte: a paixão e o interesse de um casal japonês, Mitsuko e Jun (interpretados por Youki Kudoh e Masatoshi Nagase) por conhecer o que vem de fora. Acredite, eles parecem os únicos confortáveis com a situação, porque não existe palavra que possa ser trocada pelo conforto da relação, e a manifestação clara de elegância e encantamento que ela passa. Não à toa, eles ilustram a capa do filme.
Nem sempre o primeiro conto é também o mais crucial, mas as outras histórias são bem mais convencionais e típicas do cinema independente da virada dos anos 1980 para os anos 1990, com confusões, desentendimentos e desencontros muito engraçados. Quem parece não saber falar a própria língua são os nativos, inclusive.
A segunda história, ou o segundo conto, também envolve um problema de oratória: uma mulher italiana, Luisa (vivida por Nicoletta Braschi) tem dificuldade em falar inglês, com um sotaque mais carregado, e ela parece apressada, porque já dá sua carta de apresentação na trama tendo que resolver um grande problema, lidar com a morte do marido. O que acaba tornando sua saga mais interessante, no entanto, é quem ela encontra no caminho: dois homens, um deles mero estepe para o maior enganador da trama, o encantador de serpentes vivido por Tom Noonan (em uma aparição com tiques inacreditavelmente semelhantes aos de Daniel Day-Lewis), que personifica a própria assombração de Elvis para primeiro lubridiar e depois roubar pessoas. Parece que todos ali querem vender o mesmo peixe para o olhar e o ouvido estrangeiro.
Por último, mas não menos importante, temos o encerramento do ciclo de quase-correspondências no momento mais Jarmusch do filme (com toques de Aki Kaurismäki, sua grande inspiração), em que ele convoca uma trupe de outsiders, tanto na música como no cinema, com nomes como Joe Strummer (como Johnny), conhecido por ter sido vocalista da banda The Clash, e Steve Buscemi (como Charlie), o adorável ator peculiar adotado pela indústria como coadjuvante de luxo, e a bagunça está feita. Esse segmento em específico também tem a energia caótica, mas equilibrada dos filmes dos irmãos Coen.
O que fica é um belo exemplar do que há de mais interessante no cinema de Jim Jarmusch: a busca pela identidade, seja através dos próprios cacos que a vida deixa pelo caminho, precisando ser recolhidos e ressignificados, ou através da procura por um grande sentido que só pode ser encontrado quando o olhar para o outro é sua principal referência.
Nota do crítico:
Para mais críticas, artigos, listas e outros conteúdos de cinema fique ligado na Cine-Stylo, a coluna de cinema da Singular. Clique na imagem abaixo para ver mais do trabalho do autor:
Comments