Primeiro longa de Robert Eggers explora o tema da cegueira do espírito estruturando-se sob elementos da tragédia aristotélica, bem como as influências de sua maior representante - a obra “Édipo Rei”, de Sófocles.
Em seu livro A Poética, Aristóteles propõe três elementos estruturais da tragédia: a peripécia, o reconhecimento e a catástrofe ou acontecimento patético. A peripécia ocorre, na trama, quando uma personagem faz algo esperando determinado resultado mas sendo levado a outro. Em A Bruxa, ocorre que o patriarca da família, William (Ralph Ineson), exila-se da congregação junto a sua família pois acredita que a igreja que governava o local era formada por "falsos cristãos". O objetivo de William com sua fuga é criar um espaço livre de pecados ou mesmo pecadores com sua família, uma fazenda de "verdadeiros cristãos". Essa seria a ação que visa um resultado específico positivo.
Ocorre que o primeiro problema nesta busca de William é que, até mesmo pelas próprias crenças de sua fé de que a humanidade estaria absolutamente corrompida pelo pecado, é impossível criar um lugar de "verdadeiros cristãos" absolutamente limpos de tal corrupção. William crê nisso pois enche-se de soberba, tornando-se cego aos próprios erros e pecados. O resultado disso são todos os desenrolares trágicos do filme, revelando que William levou sua família à perdição. O primeiro elemento trágico proposta por Aristóteles está aí: temos, como incitante da história, a peripécia.
Junto a ela, temos a primeira manifestação da cegueira humana em William que, espalhando-se por toda a família, transforma-os em personagens trágicos. Aristóteles também propõe, em sua análise, que o personagem da tragédia, que vê seu destino caminhar em direção ao infortúnio, não deve ser nem alguém absolutamente mal, que mereça os sofrimentos que enfrenta, nem alguém bom que é puramente vítima das consequências cruéis da fortuna. A ideia do filósofo grego é que o personagem trágico é alguém que está na linha cinzenta entre o bem e o mal, sendo até mais bem do que mal intencionado, mas que, por um erro grave, cai em desgosto. Édipo Rei, a mais clássica das tragédias, é um exemplo fácil de analisar-se e pode também ser colocado em comparação com A Bruxa: Édipo concretiza o destino anunciado pelos deuses (de que mataria seu pai e casaria com sua mãe) especialmente por sua cegueira diante das profecias e sinais de sua realização em seu caminho. Édipo é cego e, com isso, cai em loucura. William, no filme de Eggers, igualmente não é um homem mau; mas rende-se ao horror do destino trágico em sua cegueira diante dos sinais de seus erros.
Tal cegueira é explorada especialmente pela forma como o diretor lida de maneira muito frontal com a mitologia que explora: o demônio é literalmente representado por uma das figuras com a qual mais é associado - um cabrito preto com longos chifres. A floresta é infrutífera e sombria, seu filho mais novo desaparece e o outro é claramente enfeitiçado, mas William constantemente nega-se a enxergar para onde levou sua família, sendo, para isso, necessário admitir seus próprios erros e o pecado de seu orgulho. É como se todas as provas das maldições ao seu redor estivessem em sua cara (ainda mais sendo um homem que entende do sobrenatural), mas ele se nega a enxergar.
Inclusive, essa relação que Eggers estabelece com as imagens de seu filme é muito interessante porque faz com que a construção mitológica do filme esteja menos no texto (no roteiro) e mais nas imagens de fato. Os planos do filme contam histórias e fazem retratos mitológicos em si mesmos: como Caleb aparecendo nu e adoecido pelo pecado, Thomasin matando sua mãe e sujando-se com seu sangue, ou a própria imagem já mencionada de Black Philipp. São imagens que de alguma forma remetem à símbolos e arquétipos que conhecemos, seja do mal em sua figura diabólico, da corrupção pela luxúria ou de uma relação conturbada e visceral entre mãe e filha. Tais imagens precisam menos de explicação do que sentimentos; apreendemo-nas sensorialmente, pois elas trabalham com percepções profundas de conhecimentos antigos marcados no inconsciente coletivo. Robert Eggers ainda alonga os planos de seu filme para que tais imagens possam ser assimiladas em suas diversas potências de logos e especialmente mythos, ou seja, tanto racional quanto sensualmente. Esse alongar dos planos ainda cria uma sensação de estaticidade, um ritmo lento e marcado que, dentro das imagens dessaturadas e macabras do filme transmite um senso de loop infernal, como se a família estivesse em um ciclo de sofrimento e maldição interminável.
Existe, para além das imagens, uma materialização do folclore sobrenatural que ronda o filme quando o diretor coloca na boca das personagens os acontecimentos macabros que mais tarde se concretizam na tela: quando, por exemplo, Thomasin, querendo assustar sua irmãzinha Mercy, diz ser uma bruxa e narra ter feito justamente o que faria ao final: assinar um contrato com o diabo e dançar nua ao seu lado. Quando tais percepções mágicas do mundo são concretizadas em imagem, fica ainda mais clara a cegueira das personagens e, igualmente, nós, enquanto público, temos a oportunidade de sair do filme com uma noção mais mágica do que nos cerca. É como se Eggers, ao trazer o cinema como um espelho tanto de nossa imagem exterior como de nossos sofrimentos e mitos interiores e inconscientes, levasse a magia da Bruxa para o mundo além do filme. É a utilização da relação realidade e ficção no cinema como uma porta que separa dois mundos semelhantes, apenas guiados por lógicas diferentes, de modo a aproximá-los ainda mais.
Agora, retornando às perspectivas aristotélicas de análise trágica, pensemos em outro elemento estrutural já mencionado: o reconhecimento. Trata-se do momento em que um personagem sai da ignorância ao conhecimento, ou seja, percebe, de certa forma, um horror vindouro. Aristóteles aponta que o reconhecimento mais interessante é aquele resultante de uma peripécia. Temos, em A Bruxa, uma cena clara de William percebendo as consequências de sua soberba e assumindo seu pecado. Esse momento antecipa o encerramento trágico de fato, proporcionado pelo que Aristóteles chama de acontecimento patético ou catástrofe.
A catástrofe é o momento em que o erro grave cometido pela(s) personagem(ns) trágica(s) resulta nos horrores dos ferimentos e mortes. É, por exemplo, quando Édipo, após passar pelo reconhecimento de que a profecia divina foi cumprida e ver sua mãe morta, fere seus dois olhos. Em A Bruxa, é quando Black Phillip consegue levar a família à perdição por sua cegueira, seguido pelo momento em que a mãe de Thomasin ataca-a por acreditar que a menina é a bruxa, resultando no assassinato da mãe pela filha.
A concretização final da tragédia é justamente o momento em que Thomasin, sem qualquer perspectiva no mundo, sozinha, assina um contrato com Black Phillip e torna-se uma bruxa. Daí em frente, o que parece um momento de "libertação" mostra-se como uma ilusão completa, especialmente pela cena final bizarra e macabra em que Thomasin flutua, com outras bruxas, com suas gargalhadas abafadas por uma música aterrorizante e sua figura sufocada por uma mise-en-scène absolutamente sombria. Os excessos que Thomasin busca, de liberdade, desejo e possibilidades de controlar o mundo, são a mais pura ilusão que, como já vimos pelas manifestações de bruxas ao longo do filme, irá levá-la a tornar-se tão horrenda e grotesca quanto a bruxa que capturou Sam e seduziu Caleb. O destino de Thomasin é tão terrível quanto o de sua família, pois o filme de Eggers é uma tragédia em sua completude.
Tanto que acredito que este filme seja aristotélico também em sua moral, para além de como estrutura sua narrativa. Isso porque, embora lide com o drama das personagens a partir dessa perspectiva bastante mitológica, existe sim certo tom moral por trás da obra, que remete à ética aristotélica. Isso porque, em sua filosofia, Aristóteles propõe que o homem virtuoso é aquele que alcança a moderação, a "doutrina do meio-termo", que se encontra entre o excesso e a deficiência. Ou, no caso, que se equilibra entre dois excessos: a libertinagem e a repressão. William comanda sua família pela repressão e, cego de seus excessos (ou deficiências), leva-os à perdição. Thomasin, em oposto, querendo de tal forma livrar-se da dor de tamanha repressão, procura pela "liberdade" absoluta, desejo e controle da realidade; o que a leva ao destino horrendo das bruxas.
Assim, Robert Eggers orienta seu filme sob uma perspectiva mitológica-arquetípica em suas imagens folclóricas, atendo-se a uma estrutura trágica classicamente aristotélica e que, em sua moral, reflete também os pensamentos do filósofo grego.
Nota do crítico:
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